Tem alguém no meu espelho

Tem esse cara no meu espelho, nunca falei dele. Ele está lá sempre que eu vou no espelho. E sempre que olho pra ele, ele tá olhando pra mim. Não o conheço, não faço a minima idéia de quem seja realmente. E ele fica lá, lá no espelho. E é em todos os espelhos. Estou falando sério. Ele é realmente estranho. Tem os olhos mais estranhos que eu já vi, e uma cara estranha, e barba, e espinhas, sinais, enfim, toda a sorte de coisas ruins e estranhas. E ele fica me olhando. Isso é assustador. Ele deve estar lá agora, neste exato momento. Não faz nada, apenas umas caretas, e uma cara de mau de vez em quando. Se eu rio ele ri, se eu abaixo ele abaixa, e piscamos um olho, e mostramos a ligua, sorrimos, finjimos tristeza, somos bobos (isso fazemos direito). Quer dizer, ele fica me imitando. É um idiota completo. Você sabe do que eu to falando? Ele me imita e ele é bom nisso, acho até ele parecido comigo, as vezes. Não... Não tem nada haver comigo. Totalmente estranho. Olhei pra ele hoje e fiquei encarando, queria ver até onde ele agüentava. Esse cara não parece grande coisa, provavelmente não é. Mas desistimos na mesma hora, quer dizer, juntos, quando eu pisquei ele piscou também. I-D-I-O-T-A. E eu fiquei olhando pra ele, talvez eu fale com ele um dia. Melhor não. Ele pode ser idiota, ele é. É pra isso que ele serve, pra imitar, é só o que sabe fazer. Inútil. Inútil e feio, nunca vi ninguém tão feio. Olhei para ele e desci para escrever. E agora estou aqui e escrevi. Me sinto tão entediado quanto antes.

Você está suspenso e não tem como aliviar, desta vez

Suspenso! Suspenso no ar? Não! Só suspenso. Por cordas, correntes, por alguém? Suspenso por alguém me parece mais verdade. E por que? Por quem? Porque sim, porque tinha que ser feito. Inevitável, irreversível. 

A suspensão voou daquela mesa até minhas mãos, só me restava assinar, assinei. Por que concordei? Porque era preciso. Não! Mentira! Não era preciso. Tá bom. Eu não sei porque, simplesmente assinei. Foi como levar uma topada e dizer ai. Você leva e você diz. Ai. Assinei. E agora é isso que eu sou. Uma suspensão ambulante, caminhando suspenso, lendo, olhando, escrevendo e comendo suspensões. É tudo que há para se fazer. Seja suspenso também. Sejamos todos suspensos. Suspensões andando pelas ruas, se conhecendo, se amando e se odiando. Suspensões pequenas e moles, berrando de dentro das maternidades. Elas choram e crescem e viram suspensões gigantes, obesas e cruéis. Elas se multiplicam mais e dominam o mundo. O mundo inteiro está suspenso por dois dias, enquanto eu estiver.

Viagens psicodélicas numa lata de ervilhas

Vou adiantar pra você que não tem nenhuma lata de ervilhas nesse texto. Não espere que eu fale de latas ou de ervilhas. Não sei nada sobre ervilhas enlatadas, as vezes as como, as vezes não. Vejo as latas e é tudo. Não tem nada para se falar de ervilhas, ela são verdes, não são gostosas, não são ruins. Combinam com algumas coisas. Não sei com o que, mas devem combinar com alguma coisa. As como de vez em quando, já disse. Não lembro com o que, agora. No armário da minha cozinha, agora, por exemplo, não tem nenhuma lata de ervilhas. Não sei qual a última vez que comprei ervilhas, será que vou comprá-las de novo? Com certeza da próxima vez que eu vir uma lata de ervilhas vou me lembrar de agora. Talvez eu ria. Acho que não, não tem graça. Vou dar um peteleco numa lata de ervilhas, quando eu ver uma. Que difrença pode fazer um peteleco numa lata de ervilhas? Bom, tem aquela velha história de que "o batido das azas de uma borboleta aqui, pode causar um tufão no outro lado do mundo", ou algo parecido, mas nunca ouvi nada sobre petelecos em latas de ervilha. Também que porra de borboleta do caralho é essa que vai causar um tufão. O cara que escreveu isso devia ser mais louco que eu. Mas pelo menos ele não dava petelecos em latas de ervilhas por ai, eu acho. Tomara que eu jamais cruze com uma lata de ervilhas. Provalemente cruzarei. Mas alguma coisa tem que ser feita, quero dizer. Falei dessas malditas ervilhas e quando eu ver a porra de uma lata, alguma coisa terá de ser feita. É isso. Está decidido, um peteleco me parece ótimo. Será que existe um pé de ervilhas. Que estranho. Elas devem brotar do nada. Ervilhas verdes em lata. Insignificantes, mas estão sempre por lá, onde quer que seja esse lá.

Reclamações

Chovia bastante, o céu rugia como um cão danado, fui até a janela e fiquei observando a chuva, as gotas, fazendo várias, diversas, muitas, linhas verticais, outras um pouco inclinadas. Muitas linhas. Atravessando-se e unindo-se naquela dança louca. Comecei a cuspir e observar meu cuspe. Acompanhando-o com a vista até cair lá embaixo, naquele telhado 'brasilit' preto de lodo. Quando olhava o cuspe, as gotas de chuva ficavam pequeninas, viravam pontinhos brancos, como estrelas num espaço de 'brasilit' cheia de lodo. Estava vendo apenas suas costas e elas se afastando para baixo até que o cuspe sumisse entre elas, ai se transformavam, outra vez, em linhas verticais e inclinadas deixando de ser pontinhos estelares. 

- TROOMMM! - reclamava o céu para mim, mero mortal. E tome chuva. 

- Aaaahhhh! - gritei para o céu, sabendo que o som da chuva abafaria o meu grito. 

- Chhhhuuuu... - a chuva se intesificou, agora molhava a borda da minha janela, o chão do meu quarto e a mim. 

Não eram mais linhas verticais e inclinadas, e sim uma poeira que se afastava e ia cobrindo o telhado, lavando-o das fezes dos pássaros, depois recuava para avançar novamente, sempre com o mesmo canto: 

- Chhhhuuuu... - aumentando e diminuindo de volume, canto interrompido apenas pelas reclamações: 

- TROOMMM! TROOMMM! - antecedidas por um clarão que mudava as nuvens, de cinza escuro para uma espécie de branco vivo como 'neon'. E a reclamação, silenciava o canto da chuva, para que logo em seguida ela cantasse novamente. Havia certo ritmo louco em tudo aquilo então fiquei ali, a apreciar. 

- Chhhhuuuu... Chhhhuuuu... Chhhhuuuu... 

- TROOMMM! TROOOOOMMMMMMMMM! 

- Chhhhuuuu... Chhhhuuuu... Chhhhuuuu... Chhhhuuuu... 

- TROOOOOMMMMMMMMM! 

E assim continuou por algum tempo. Até que parou sem que eu conseguisse me dar conta, restando apenas um baixo resmungo das calhas derramando água misturada a fezes e mijo. Até que nem o resmungo sobrou e o barulho dos motores e das pessoas voltou a reinar absoluto. Fazendo-me esquecer as reclamações que ouvira do céu.

Gordurosa, oleosa, nojenta




Você não odeia as embalagens de óleo? Isso! Óleo de comida. Aqueles que vêm numas embalagens de plástico compridas. Por que esses malditos potes estão sempre gordurosos, oleosos, nojentos? Quero dizer... assim... as embalagens de leite, não ficam cheias de leite por fora, nem as de catchup ou maionese ou quaisquer outras, mas as de óleo, essas desgraçadas estão sempre da mesma forma... gordurosas, oleosas, nojentas. Sempre que uso óleo para fritar alguma coisa, me apresso em lavar as mãos com bastante detergente e por que? Porque estão cheias de óleo, gordurosas, oleosas, nojentas. Mas hoje será diferente. Hoje porei um fim nesse império porco, nessa podridão, nessas latas engorduradas malditas. Hoje o óleo verá quem dá as cartas por aqui...

Lacrei tanto quanto pude a embalagem e lavei-a com detergente. Não medi esforços, usei quase todo o detergente que tinha a minha disposição. Não cometeria o deslize de não lavar direito diante de tão ardiloso inimigo. Lavei umas três ou quatro vezes, até sentir que a embalagem estava mesmo limpa. Não achei em momento algum que conseguiria, mas consegui. Até ouço o ranger do plástico quando esfrego meu dedo na embalagem.

Depois de guardá-la, respirei aliviado. Parece que algumas coisas podem ser resolvidas, fazendo-se um pequeno esforço. Ainda existe solução para a maioria das coisas que nos aborrecem. E tentar sempre parece idiotice, mas ser um idiota completo é direito de todo ser humano. A partir de hoje serei idiota mais vezes...

Só os trouxas trabalham no domingo


- Lucas! - Pedro o cutucava apontando para a janela de um prédio próximo.
- O que é caralho? Não sabe falar sem cutucar? - Lucas virou-se lançando um jato de fumaça na cara de Pedro. Era seu quarto cigarro 'derby' desde que acordara.
- Eu quero que você olhe 'veio'.
- Olhar o que, porra?
- Ali! - o dedo de Pedro tremia devido a ressaca, tentando se firmar enquanto apontava a janela. - Naquela janela, o sujeito vai derrubar o colchão.
Na janela do prédio, no outro lado da rua, um sujeito procurava a melhor forma de encaixar o seu colchão na janela.
*****
- Joaquim, você vai fazer bosta. - o irmão dele assistia àquilo deitado em seu sofá.
- O que? - Joaquim, por sua vez, continuava virando, colocando e tirando seu colchão de solteiro na janela da sala.
- Falei que isso vai dar bosta.
- Por que você não pára de reclamar e me ajuda?
- Faz assim: ainda é muito cedo, o sol só vai bater ai, lá pela tardinha, vai pro seu trabalho e à tarde, eu levanto ele ai na janela.
- Não! Se apenas levantar, ele só toma sol na pontinha.
- Que pontinha? Como assim 'jow'?
- Aqui 'óóó'! - Joaquim batia na parte de cima do colchão.
- Mas, pelo menos, o cheiro de cachorro molhado vai sair.
- Eu quero que ele tome sol.
- Isso é um colchão, caralho e não a porra de uma planta.
- O que?
- Nada! Esquece!
- Ah! Vou tomar café, depois eu dou um jeito.
*****
Pedro se levantou, apanhou sua velha mochila, do chão sujo naquele ponto de ônibus desativado, e apertou ela nos ombros e no peito.
- Vamos, Lucas. Levanta.
- Não!
- Quando o colchão cair, agente cata ele e sai correndo.
- O cara num vai derrubar. Ele num é idiota.
- Vai sim! Eu sonhei com isso, uma noite dessas.
- Você sonhou com um cara jogando um colchão pela janela?
- Não, caralho! Sonhei que dormia num lindo colchão, macio e confortável.
- Ah! Conta outra. Você tá é bêbado.
- Nem bebi ainda... e por falar nisso... - Pedro abaixou-se para alcançar o copo, com quatro dedos de pinga e uma mosca boiando, ao lado de Lucas. Tomou um curto gole, soltando um longo - Aaaahhhh! - em seguida, - Essa é da boa meu filho.
- Falei que o cara não era trouxa. - Lucas apontava para a janela onde o colchão estava parado e o sujeito havia sumido.
- Droga! A culpa é sua. Você é foda. Não ajuda e ainda fica me azarando.
- O que?
- Você é uma porra de um pé-frio, é isso que você é.
- O que?
- Vai a merda. - Pedro virou o resto da pinga, junto com o cadáver da mosca, colocou o copo cuidadosamente no chão e caminhou para o outro lado da rua, se posicionando embaixo da janela. - Tenho certeza que ele ainda vai derrubar a minha cama. - disse para sí.
*****
Joaquim havia acabado de comer três pães com ovos e duas chícaras de café com leite. Voltava determinado a cumprir a missão que havia se imposto. Seu colchão deveria passar a tarde tomando sol, por inteiro, na janela da sala. Ergueu o colchão e recomeçou a posicioná-lo com a metade para fora da janela.
- Nunca vi ninguém tão teimoso quanto você, Joaquim.
- Ezequiel!
- "Quê"?
- Vai se foder!
- Tomara que essa bosta de colchão, caia na lama.
- Você não deveria estar se arrumando para o trabalho?
- Hoje é domingo. Só os troxas trabalham no domingo.
- VAI-A-MER-... - Joaquim se virou com os olhos arregalados para Ezequiel.
- SABIA! SABIA! - Gritava Ezequiel, em meio as gargalhadas. - E você vai ficar ai parado, seu trouxa? CORRE!
Joaquim ficou, por um momento, parado com aqueles olhos arregalados, depois saiu correndo para a porta, enquanto Ezequiel gargalhava como uma hiena, indo para janela.
*****
Pedro andava de um lado para outro embaixo da janela, impaciente. Podia sentir seu estômago vazio (exceto pela mosca) quente da pinga que tinha virado. Seu amigo do outro lado, continuava fumando cigarro e balançando a cabeça em sinal de reprovação.
- Quanto tempo mais vai demorar? - Pedro falava sozinho. - Eu sei que vai cair. Sempre sonho com as coisas antes delas acontecerem. Foi assim naquela vez em que ganhei uma bolada, no bicho. Vai cair. Ganhei uma bolada apostando no cachorro, tinha escutado um latido no sonho. Vai cair. Não suporto mais dormir na calçada. Minhas costas doem. Vai cair. Vou pegar minha cama nova e fixar residência em algum lugar. Fazer um barraquinho de papelão para mim em alguma esquina. Vai cair...
- Psiu. - Lucas agitava os braços impaciente, do outro lado da rua. Não queria gritar e alarmar o sujeito com o colchão, lá encima.
- Isso mesmo. - Pedro continuava impaciente, pra lá e pra cá, falando sozinho. - Vou conseguir umas caixas, montar um barraco na esquina do 'primeiro gole' e, talvez depois disso, eu consiga uma mulher...
- Psiiiuuu. - Lucas dava saltos, tentando chamar a atenção do amigo.
- Já posso até ver. - Pedro ignorava tudo a seu redor. - Meu barraco vai ser o mais legal e de dia eu vou pedir grana na praça, para, a noitinha, comer um pão e tomar minha branquinha ao lado da minha morena...
- Eeeeiii! Psiiiiuuu! - Lucas tentava chamar atenção do parceiro de rua, sem alarmar o sujeito que se atrapalhava todo com o colchão na janela, olhando para dentro do apartamento.
Pedro continuava ruminando seus planos de um lado para outro da calçada, quando Lucas teve a idéia brilhante. Apanhou o copo do amigo que estava no chão ao seu lado e o amassou. No mesmo instante Pedro virou-se, acordando de suas divagações e arregalou os olhos para o outro lado da rua.
- Você amassou meu copo? - disse em voz alta para Lucas.
- Xxxxiii! - Lucas apontava para janela.
- Por que você amassou meu copo, seu demente? Vou jogar seus cigarros na lama. - Pedro aumentava um pouco o tom de voz, quando ouviu um grito vindo da janela do sétimo andar.
-VAI-A-MER...
Olhou para cima para ver seu milagre acontecendo. O colchão caía, linda e pesadamente em sua direção. Adiantou-se dois passos para deixar sua nova cama, a primeira parte de toda uma história que seria construída, cair ruidosamente atrás de si.
- Eu falei. Eu falei! - repetia Pedro, olhando para Lucas, saltando e sorrindo como uma criança.
- Agarra ele e cai fora! - gritou Lucas em sua direção.
- Ãn?
- Corre com essa coisa para trás daquela budega. VAAAIIII!
Pedro colocou o colchão embaixo do braço e correu o mais rápido que pode para a budega da esquina.
*****
Lá encima, Ezequiel, assistia a cena, suas gargalhadas ecoando pelo apartamento, virava o rosto olhando de um mendigo para o outro, repetidas vezes.
*****
Joaquim correu para a porta, abriu-a e correu para o elevador. Socava o botão do elevador impaciente, repetindo como louco:
- Vai! Vai!
O elevador estava no térreo e demoraria uma eternidade para chegar ao sétimo andar. Desistiu do elevador e correu desesperado para a escada pulando de quatro em quatro, cinco em cinco degraus. Quando chegou ao térreo, correu para a portaria socando violentamente o balcão, onde o porteiro dormia. Raimundo acordou, pulando assustado:
- "Qué" isso? "Qué" isso? - gritava o porteiro, olhando para Joaquim.
- Abre esse portão! - gritou, batendo novamente no balcão.
- Que, que tá "aconteceno", "dotô"?
- ABRE LOGO A DROGA DESTE PORTÃÃO.
Joaquim debruçou-se sobre o balcão e apertou o botão que abria a porta de saída do prédio. Em seguida correu para a rua, enquanto Raimundo ficava olhando espantado em seu banco.
Já na rua, Joaquim parou embaixo da janela e olhou em volta. Do outro lado da rua estava um mendigo, fumando seu cigarro tranquilamente.
- Você viu um colchão cair aqui? - perguntou Joaquim com um grito que Ezequiel pode ouvir do sétimo andar.
- Colchão? - o mendigo falou num tom que Joaquim pudesse ouvir.
- Você é idiota? Meu colchão acabou de cair. O que você fez com ele? - começou a caminhar para o outro lado da rua.
- Hummm! - após uma longa tragada, o mendigo colocou a mão no queixo pensativo. - Era um colchão de solteiro?
- Isso! - já estava bem próximo.
- E caiu agorinha mesmo "né"?
- Isso! Onde está o meu colchão?
- Hummmm! - continuava esfregando seu queixo, em seguida apontou para o lado errado da rua. - O cara colocou o colchão na cabeça e correu desembestado pra lá. Eu até tentei impedir, mas o cara devia ser maratonista. Nunca vi ninguém correr como ele com um colchão na cabeça.
- Pra lá? - a rua era longa e Joaquim ficou pensando se daria para o sujeito chegar até a primeira esquina.
- Isso! - o mendigo se livrou de sua piola e colocou a mão no ombro de Joaquim. - O "dotô" num tem ai um cigarrinho pra mim, não?
Joaquim enfiou a mão no bolso distraidamente, ainda olhando para o lado errado da rua, quando tirou a mão derrubou uma nota de dois reais.
- Não tenho. Descul...
- Opa! - interrompeu o mendigo. - Não precisava "dotô". Pode deixar que eu apanho para o senhor. Muito obrigado, viu?
Joaquim se deu conta do dinheiro, mas era tarde o mendigo já o havia apanhado.
- Tudo bem. - disse Joaquim, desanimado.
- Sinto muito pelo seu colchão.
*****
Ezequiel, lá encima, via seu irmão conversando com um mendigo enquanto o outro mendigo, com o colchão espreitava a conversa atrás da budega, na esquina. O da budega, olhava e se benzia. Ezequiel se divertia, assistindo seu irmão e os mendigos. O do colchão pareceu perceber que Ezequiel assistia a tudo e apertou o colchão contra o peito, preparando-se para uma possível fuga. Ezequiel olhou para Joaquim e o mendigo a seu lado, depois para o outro escondido na budega e decidiu. Fez um gesto para o mendigo, dizendo para que ele ficasse em silêncio.
*****
Pedro suspirou aliviado atrás da barraca. Agora só lhe restava esperar que o sujeito conversando com seu amigo, desistisse do colchão e fosse embora. Olhou para o céu e agradeceu em silêncio.
*****
Joaquim começava a se afastar do mendigo, quando se lembrou de seu irmão na janela.
- Ezequiel! Ezequiel! - gritou ele.
Da janela, Ezequiel perguntou o que ele queria erguendo o queixo e abrindo os braços.
- Cade? - gritou Joaquim abrindo os braços.
*****
Ezequiel sentia um pouco de pena dos mendigos, mas o que ele realmente queria era provar pro seu irmão, mais uma vez, que estava certo e ele errado. Abriu os braços e ergueu os ombros dizendo, com isso, que nada sabia. Em seguida bateu com os dedos nas costas do seu punho fechado, sinalizando para seu irmão que ele estava atrasado.
*****
Joaquim suspirou, cansado, havia desistido. Despediu-se do mendigo e seguiu para a porta do seu prédio.
*****
Pedro vibrou pela segunda vez. Estava perto demais de concretizar o início de uma nova vida.
*****
- Obrigado "dotô". Da próxima vez, juro que dou um jeito, mas não deixo o sujeito fugir. - disse Lucas, voltando a sentar no chão.
- Tá. Tá. Adeus. - o sujeito virou-se e foi embora.
Lucas esperou a porta do prédio se fechar, apanhou sua mochila e começou a caminhar em direção a budega. Pedro estava lá com seu colchão.
- Vamos. Temos que sair daqui, antes que o sujeito apareça na janela e me veja. - disse Pedro, olhando a janela assustado.
- Ok! Vamos por ali. Sei de um cara que vai pagar uma nota por esse colchão.
- O que? Você acha mesmo que vou vender meu colchão?
- Hahaha. Vamos não vou nem discutir isso com você. Preciso de cigarros e você precisa de sua pinga. O que pensa em fazer? Conseguir um trabalho?
Caminharam na direção que Lucas indicara, Pedro estava cabisbaixo e silencioso.
- Tá bom. Tá bom. Não venderemos o colchão. Quais são seus planos? - disse Lucas, tentando reanimar o amigo.
- Não. Você está certo. Estou morrendo de sede e o colchão não é só meu. Vamos dividir a grana. Você acha que esse cara trabalha no domingo?
- Não sei. Isso vai depender de, ele ser ou não um trouxa.
- Não entendi.
- Deixa pra lá. Vamos embora.

Porque eu posso


Num domingo de verão, à tarde, no Anhagabaú, o vento sopra fresco, como se o tempo o houvesse economizado a semana inteira, não entregando às centenas de transeuntes que são obrigados a trafegarem por ali, guardando-o para nós, que estamos aqui por prazer, que trazemos nossos livros, nossas namoradas, nossos pensamentos para desfrutar desse cenário tão meticulosamente arquitetado. E foi em um destes domingos que vislumbrei, pela primeira vez, um sentimento que mesmo muitos anos depois, não viria a nomear ou distinguir.

A brisa soprava insistente, tentando virar as páginas do meu livro, o que fazia com que tivesse de segurá-lo com as duas mãos. À minha frente, um pouco distante, skatistas arriscavam suas manobras em degraus que serviam, em outros momentos, como bancos, guardas conversavam em um posto policial mais a frente e algumas crianças e cachorros corriam e saltavam em frente a seus donos e pais. Reparei que, pela terceira vez em menos de cinco minutos, aquele homem passava a minha frente. Olhou para meus sapatos que estavam fora dos meus pés, minha mochila aberta a meu lado, o livro que eu tentava ler e depois me olhou. Notou que eu o encarava, mas não se deixou intimidar por isso, sentou-se a uns dez ou quinze metros de costas para mim, ficou ali por uns instantes e saiu. De rabo de olho o acompanhei enquanto dava a volta na área onde eu estava, que era uma figura geométrica indistinguível limitada de todos os lados por uma cercazinha de uns trinta centímetros de altura, havia algumas palmeiras pequenas e alguns arbustos. Fechei o livro e o pus na mochila, fechando o zíper rapidamente. Ele aproximou-se e parou a meu lado. Fedia, estava sujo e trajava farrapos. Olhou em volta enquanto eu apertava a correia da mochila e media a distância entre minhas mãos e o par de tênis a minha frente. Ainda sentado, encarei-o irritado e ele esboçou um sorriso cínico no canto esquerdo dos lábios feridos. Mostrei o posto policial com um gesto de olhos e reparei seu sorriso cínico se espalhando por toda boca imunda. Aproximou-se um passo e resmungou:

- Está se borrando de medo, garoto. - sua voz parecia a minha, quando acordava de ressaca.

- Não tenho nada aqui, só livros e um caderno. - apesar de todo meu esforço para falar alto, a voz saiu baixa e trêmula.

- Presta atenção! Se você não me entregar tudo agora, vou bater em você até você ficar mole. - ele estava sujo como um mendigo, vestia-se como mendigo, fedia com mendigo, mas falava educadamente.

Os policiais nos olhavam, mas isso parecia não fazer diferença alguma para ele.

- Cara, a polícia está bem ali. Você não tem chance alguma. Vai embora!

- Anda moleque. - deu um chute de leve nos meus pés e os policiais começaram a vir em nossa direção.

- Cara, o que você está fazendo? - eu já estava realmente assustado e não conseguia me levantar.

- Porque eu posso. - disse isso enquanto pisava com força em minhas pernas - seu franzino metido a bosta do caralho.

Abaixou-se e desceu seu punho como um martelo, raspando minha testa e minha orelha direita até parar em meu ombro, o que me fez abaixar mais na grama e tentar, em vão, me virar para escapar. Um de seus pés continuava prendendo minhas pernas e a dor me impedia de fugir. Mais socos vieram, caindo feito pedras, passando por entre meus braços, atingindo meu rosto, minha cabeça, meu peito. Notei que tinha soltado minhas pernas, pois agora além dos socos vinham chutes, por um instante pareceu-me que estava sendo espancado por três ou quatro homens. Senti o estalo de ossos em minhas costas, não havia mais oxigênio no ar. Nem sabia mais distinguir se estava com os olhos abertos ou fechados, clarões coloridos rasgavam o céu e o chão. Trovões ressoavam dentro e fora de mim. Meus braços continuavam balançando em vão, os socos e chutes não cessavam, o tempo havia parado e as pancadas vinham de qualquer lado. Parecia-me impossível que isto estivesse acontecendo, custava a encontrar um motivo para estar apanhando e não encontrava. Nem sabia onde estava, nem quem era. Havia um gosto salgado em minha boca e meu rosto estava completamente molhado, tinha também uma pedrinha que rebatia entre meus dentes. Queria perder os sentidos, desmaiar. Mas o tempo estava parado e tudo que existia eram socos e chutes e sangue e uma pedrinha em minha boca, não, duas e dor, muita dor, que começava das minhas costelas ia para meu peito e acabava por se aninhar lá no fundo da minha alma. Em seguida fui jogado para frente e rolei na grama parando de bruços. Um instante depois vi que os policiais o haviam tirado de perto de mim, mas penavam para derrubá-lo, ele resistiu com alguns socos no ar, para depois ser acertado por um cassetete e derrubado de bruços na minha frente e com o rosto virado para mim. Olhava-me e sorria, apanhando enquanto eu procurava meu dente quebrado, na pequena poça de sangue que eu havia cuspido a minha frente. Ouvia as pancadas abafadas que eram dadas em suas costas e não tinha forças para me erguer. Um cachorro veio me cheirar e seu dono veio em seguida tentando afastá-lo, desisti de me erguer e deixei meu corpo pesar sobre a grama. O outro continuava apanhando, sorrindo e me encarando, ao que eu não conseguia desviar o olhar. Desejava estar em casa, desejava que tudo acabasse, perder os sentidos ou morrer, qualquer coisa que me livrasse daquele pesadelo. Mas a dor me mantinha acordado e aquele sorriso era como uma farpa na pele, pequena demais para ser arrancada com a pinça, como um parafuso enferrujado e remoído que jamais vai ser removido.

Os policiais puseram o sujeito de pé e um deles veio em minha direção.

- Você está bem, rapaz? Já chamamos uma ambulância. O que esse cara queria? Por que não nos chamou logo?

- Não sei. Eu não sei. - e as lágrimas vieram se juntar ao sangue em meu rosto.

3456

Jonas caminhava, lentamente, marcando o ritmo e contando os passos. Parou e reparou em um grupo de quatro jovens que vinha em sentido contrário. Caminhavam conversando distraidamente. Duas garotas lindas, puras, sorridentes, apaixonadas pelos dois rapazes. Olhavam-se, falavam e sorriam.

"Por que não posso ser como eles?" Pensou. E logo obteve a resposta:

"Poder, você pode, camarada. Você apenas, não é!" Seu sínico amigo, Bruno havia voltado.

"Oh! Acordei você? Catástrofe! Por um momento achei que teria uma noite agradável. Você é a morte de todas as minhas esperanças."

"Adoro esse drama. Uma bela noite para uma caminhada, não?"

"Estava..."

"Não finja que não curte conversar comigo, sou o único que te conhece, o único que te entende. Enfim, o único que conversa com você. Se você simplesmente seguisse meus conselhos, com toda certeza, aprenderia a ser como todos os outros."

"Não me lembro de uma só vez em que você me deu algum conselho."

"Isso mesmo, este é o ponto. Você nunca me ouve. Por isto não se lembra."

"Chega! Tomarei um sorvete. E você, trate de esquecer-me."

"Adoraria."

A discussão fez com que Jonas apressasse o passo, chegando rapidamente à porta de uma lanchonete.

"Aqui? Você vai tomar sorvete aqui? DUVIDO!" Bruno parecia não ter intenção de deixá-lo em paz.

"Qual o problema deste lugar?"

"Hahaha"

"Qual a graça retardado?"

"Não há nada de errado com o lugar, idiota. É ótimo por sinal, como qualquer outro. Mas, para mim, que não sou louco. Já você, não dou um minuto para que comece com suas análises e observações. Você jamais entrará ai."

"Quanto você quer apostar?"

"Vai lá! Senhor ‘eu sou normal’, toma seu sorvete."

"É uma ótima lanchonete, meu caro. Limpa, organizada, bem freqüentada, segura..."

"Eu to careca de saber que o lugar é bom. O que não to vendo é você lá dentro."

"Calma! Não é assim que se entra nos lugares. Ainda estou me certificando de alguns detalhes."

"É disso que estou falando. Você é louco."

A porta estava a menos de cinco passos de Jonas, pessoas entravam e outras saiam. Com sandaes, sorvetes, milk shakes, lanches e outras porcarias. Também haviam pessoas sentadas dentro da lanchonete em pequenas mesas vermelhas de metal. Mastigavam, engoliam e falavam. Migalhas caiam sobre as mesas, os fundos dos copos estavam molhados, guardanapos eram usados e amassados no canto de pratos, saquinhos de catchup emporcalhavam as bandejas, havia um bigode que insistia em embeber-se naquele milk shake... Esticando um pouco o pescoço Jonas notou uma gota de suor na testa do garçom. E aquela gota era imensa, e parecia aumentar de tamanho a cada segundo e brilhava como um cristal. Jonas imaginou por um instante a infinidade de bactérias que poderiam ou deveriam habitar àquela gota. Como aquele garçom podia trabalhar com aquela gota pendurada em sua testa? Aquilo tudo era um ultraje. Aquelas pessoas não viam todo aquele suor? E eles levavam seus filhos ali, e os namorados levavam suas namoradas ali. E todos comiam hamburguer's ensopados em suor, e sorvetes com coberturas de suor. Era nojento, humilhante e Jonas jamais entraria ali.

"É só um sorvete. Uma gota de suor até ajudaria no sabor. Pára de frescura e 'vamo' lá!

"Cale-se!"

"Pobre Jonas. Louco varrido."

"Vou comprar sorvete no supermercado."

"Vai? Você já viu uma fábrica de sorvetes? Sabe como eles fazem?"

"Tem razão."

"Não seu débil mental, estou brincando. Adoraria tomar sorvete. E não tenho idéia de como é feito."

"Farei em casa, deve ter alguma receita na internet."

"Pobre Jonas."

E Jonas seguiu caminhando, havia andado 3456, e havia exatamente 3456 a caminhar de volta.

Feliz 2014


Estima-se que a legalização dos bingos renderá ao governo o equivalente a 14 AeroDilmas. A decolagem da presidenta estará garantida pela propina não contabilizada do lobby da jogatina.

Mas, como se sabe, a boca é grande. Por isso o cassino precisa também da CPMF, para fazer girar a roleta da saúde – aquela que cura todos os males da burocracia companheira.

Mesmo assim, a arrecadação mais do que recorde não será suficiente. Afinal, para o governo popular, as eleições de 2014 começam agora. E é preciso engordar a mágica da bondade.

A idéia é dar uma subida na linha da pobreza, deixando entrar mais gente na festa do Bolsa Tudo.

Em termos da batalha ideológica, está tudo dominado. Hoje, quem ousa dizer que o assistencialismo petista não é a vanguarda da civilização está perdido. A opinião pública parece ter sido seqüestrada pelos robespierres do Ipea.

Este é o Brasil moderno: dinheiro de graça para os pobres, e final feliz garantido no Oscar.

O novo conceito de prosperidade, que abençoa um exército de afilhados do Brasil pendurados nas bolsas do lulismo – o Baú da Felicidade do século 21 – é a base do projeto Dilma 2014. Se tudo der certo, a hegemonia neopopulista ficará a três anos de igualar o reinado de Getúlio Vargas.

É essa modernidade que vem encantando os bem pensantes, incluindo uma parcela que nem está na folha do PT.

O sucesso formidável da transformação do Bolsa Tudo em votos, que consagrou a presidenta pára-quedista, é um poderoso formador de convicções intelectuais. O desfile de teorias para justificação sociológica do novo Baú da Felicidade está só começando.

O Brasil vai erradicar a pobreza distribuindo dinheiro a fundo perdido. Como ninguém pensou nisso antes?

Vamos esperar para ver esse final feliz: uma população vivendo de mesada de um Estado que vende o almoço para pagar o jantar.

Que os bingos abençoem o país do futuro.

autor, Dyego Alexandre

Calma

Despertei
                    E desperto, continuo
Calmamente
                    E a calma me deprime
Deprimido, sigo
                    Não em frente, para o lado
Ao lado, companhia
                    Acompanhado, continuo 
Agora em frente
                    Da calma me desfaço
Junto dela segue a depressão
                    Continuar é bem melhor
Durmo novamene.

Escolho o ódio

Vi o ódio
Olhei-o nos olhos, encarei e baixei a cabeça
Forte, seguro e nítido,
Cruel e dissimulado
O que eu vi?

Vi a maldade
Agora, sei que diziam a verdade
Indestrutível e indissolúvel,
Competente, infalível.
O que foi visto?

Mas aqui misturo os dois. E confundo.
Misturo meu ódio à maldade alheia.
O competente é a maldade
O ódio é caos
O infalível é a maldade
O ódio a isso é o que nunca deve ser dissolvido.

Vi ambos
Maldade real e de uma pequenez indescritível.
Calma, fria e instigada
Maldade que não se permite explosões
Detem o controle
Pisa, humilha
O ódio, apenas vislumbrei,
Sua face não me é estranha,
Já o havia visto de relance

Num espelho, será?

Maldade com ou sem limites?
Torço para nunca descobrir a resposta.

Quem sabe?

Será que é ai que está o verdadeiro lance?
Em saber a verdade?
Lá no fundo, uma voz grita,
Sinto que está ficando rouca.
Ela diz: É você, você pode!
Mas quem me garante que não sou eu me enganando?
Quem me garante quem eu sou?
Quem pode me ajudar nesta questão, a não ser eu mesmo ?
E se não confio em mim o que me resta?
Chorar, gritar, correr, pular?
Escrever...

Ouço alguns dizerem:
Você pode, você é bom!
Potencial?
Palavra estranha para mim,
Significaria, eu posso?
Quem disse a eles, quem disse a todos os outros?
Como eles sabiam?
Simplesmente sabiam.
E se não sei, significa que não sou?
E se não confio em mim o que me resta?
Fazer, beber, fugir, pedir?
Escrever...

Quando estou sozinho, vozes gritam em minha cabeça
Mas, do que estou falando?
Eu sempre estou sozinho.
Um nada me invade e toma conta do que acho que sou.
Quando não há ninguém por perto,
Neste exato momento, estou transbordando de nada
E ondas vem e vão,
Certezas e incertezas.
Apenas as incertezas são certas,
As certezas que tenho se desmancham em lágrimas.
Será que minto para mim?
Talvez não, mas já menti.
E se não confio em mim o que me resta?
Pedir, dormir, comer, sair?
Escrever...

As lágrimas são inevitáveis. Uma certeza?
A solidão é tudo que temos. Uma certeza?
Todos eles sabiam a verdade, uma incerteza.
Todos conseguiram porque eram bons, uma incerteza.
Eu posso, incerteza, eu tento, certeza,
Eu faço, certeza, faço bem, incerteza
Onde esta estrada me leva?
O que vem depois? Um querer saber.
Lá no fundo a fagulha da dúvida não se apaga
Mas esta incerteza é melhor do que a certeza de ela nunca ter existido.