-
Lucas! - Pedro o cutucava apontando para a janela de um prédio próximo.
-
O que é caralho? Não sabe falar sem cutucar? - Lucas virou-se lançando um jato
de fumaça na cara de Pedro. Era seu quarto cigarro 'derby' desde que acordara.
-
Eu quero que você olhe 'veio'.
-
Olhar o que, porra?
-
Ali! - o dedo de Pedro tremia devido a ressaca, tentando se firmar enquanto
apontava a janela. - Naquela janela, o sujeito vai derrubar o colchão.
Na
janela do prédio, no outro lado da rua, um sujeito procurava a melhor forma de
encaixar o seu colchão na janela.
*****
-
Joaquim, você vai fazer bosta. - o irmão dele assistia àquilo deitado em seu
sofá.
-
O que? - Joaquim, por sua vez, continuava virando, colocando e tirando seu
colchão de solteiro na janela da sala.
-
Falei que isso vai dar bosta.
-
Por que você não pára de reclamar e me ajuda?
-
Faz assim: ainda é muito cedo, o sol só vai bater ai, lá pela tardinha, vai pro
seu trabalho e à tarde, eu levanto ele ai na janela.
-
Não! Se apenas levantar, ele só toma sol na pontinha.
-
Que pontinha? Como assim 'jow'?
-
Aqui 'óóó'! - Joaquim batia na parte de cima do colchão.
-
Mas, pelo menos, o cheiro de cachorro molhado vai sair.
-
Eu quero que ele tome sol.
-
Isso é um colchão, caralho e não a porra de uma planta.
-
O que?
-
Nada! Esquece!
-
Ah! Vou tomar café, depois eu dou um jeito.
*****
Pedro
se levantou, apanhou sua velha mochila, do chão sujo naquele ponto de ônibus
desativado, e apertou ela nos ombros e no peito.
-
Vamos, Lucas. Levanta.
-
Não!
-
Quando o colchão cair, agente cata ele e sai correndo.
-
O cara num vai derrubar. Ele num é idiota.
-
Vai sim! Eu sonhei com isso, uma noite dessas.
-
Você sonhou com um cara jogando um colchão pela janela?
-
Não, caralho! Sonhei que dormia num lindo colchão, macio e confortável.
-
Ah! Conta outra. Você tá é bêbado.
-
Nem bebi ainda... e por falar nisso... - Pedro abaixou-se para alcançar o copo,
com quatro dedos de pinga e uma mosca boiando, ao lado de Lucas. Tomou um curto
gole, soltando um longo - Aaaahhhh! - em seguida, - Essa é da boa meu filho.
-
Falei que o cara não era trouxa. - Lucas apontava para a janela onde o colchão
estava parado e o sujeito havia sumido.
-
Droga! A culpa é sua. Você é foda. Não ajuda e ainda fica me azarando.
-
O que?
-
Você é uma porra de um pé-frio, é isso que você é.
-
O que?
-
Vai a merda. - Pedro virou o resto da pinga, junto com o cadáver da mosca,
colocou o copo cuidadosamente no chão e caminhou para o outro lado da rua, se
posicionando embaixo da janela. - Tenho certeza que ele ainda vai derrubar a
minha cama. - disse para sí.
*****
Joaquim
havia acabado de comer três pães com ovos e duas chícaras de café com leite.
Voltava determinado a cumprir a missão que havia se imposto. Seu colchão
deveria passar a tarde tomando sol, por inteiro, na janela da sala. Ergueu o
colchão e recomeçou a posicioná-lo com a metade para fora da janela.
-
Nunca vi ninguém tão teimoso quanto você, Joaquim.
-
Ezequiel!
-
"Quê"?
-
Vai se foder!
-
Tomara que essa bosta de colchão, caia na lama.
-
Você não deveria estar se arrumando para o trabalho?
-
Hoje é domingo. Só os troxas trabalham no domingo.
-
VAI-A-MER-... - Joaquim se virou com os olhos arregalados para Ezequiel.
-
SABIA! SABIA! - Gritava Ezequiel, em meio as gargalhadas. - E você vai ficar ai
parado, seu trouxa? CORRE!
Joaquim
ficou, por um momento, parado com aqueles olhos arregalados, depois saiu
correndo para a porta, enquanto Ezequiel gargalhava como uma hiena, indo para
janela.
*****
Pedro
andava de um lado para outro embaixo da janela, impaciente. Podia sentir seu
estômago vazio (exceto pela mosca) quente da pinga que tinha virado. Seu amigo
do outro lado, continuava fumando cigarro e balançando a cabeça em sinal de
reprovação.
-
Quanto tempo mais vai demorar? - Pedro falava sozinho. - Eu sei que vai cair.
Sempre sonho com as coisas antes delas acontecerem. Foi assim naquela vez em
que ganhei uma bolada, no bicho. Vai cair. Ganhei uma bolada apostando no
cachorro, tinha escutado um latido no sonho. Vai cair. Não suporto mais dormir
na calçada. Minhas costas doem. Vai cair. Vou pegar minha cama nova e fixar
residência em algum lugar. Fazer um barraquinho de papelão para mim em alguma
esquina. Vai cair...
-
Psiu. - Lucas agitava os braços impaciente, do outro lado da rua. Não queria
gritar e alarmar o sujeito com o colchão, lá encima.
-
Isso mesmo. - Pedro continuava impaciente, pra lá e pra cá, falando sozinho. -
Vou conseguir umas caixas, montar um barraco na esquina do 'primeiro gole' e,
talvez depois disso, eu consiga uma mulher...
-
Psiiiuuu. - Lucas dava saltos, tentando chamar a atenção do amigo.
-
Já posso até ver. - Pedro ignorava tudo a seu redor. - Meu barraco vai ser o
mais legal e de dia eu vou pedir grana na praça, para, a noitinha, comer um pão
e tomar minha branquinha ao lado da minha morena...
-
Eeeeiii! Psiiiiuuu! - Lucas tentava chamar atenção do parceiro de rua, sem
alarmar o sujeito que se atrapalhava todo com o colchão na janela, olhando para
dentro do apartamento.
Pedro
continuava ruminando seus planos de um lado para outro da calçada, quando Lucas
teve a idéia brilhante. Apanhou o copo do amigo que estava no chão ao seu lado
e o amassou. No mesmo instante Pedro virou-se, acordando de suas divagações e
arregalou os olhos para o outro lado da rua.
-
Você amassou meu copo? - disse em voz alta para Lucas.
-
Xxxxiii! - Lucas apontava para janela.
-
Por que você amassou meu copo, seu demente? Vou jogar seus cigarros na lama. -
Pedro aumentava um pouco o tom de voz, quando ouviu um grito vindo da janela do
sétimo andar.
-VAI-A-MER...
Olhou
para cima para ver seu milagre acontecendo. O colchão caía, linda e pesadamente
em sua direção. Adiantou-se dois passos para deixar sua nova cama, a primeira
parte de toda uma história que seria construída, cair ruidosamente atrás de si.
-
Eu falei. Eu falei! - repetia Pedro, olhando para Lucas, saltando e sorrindo
como uma criança.
-
Agarra ele e cai fora! - gritou Lucas em sua direção.
-
Ãn?
-
Corre com essa coisa para trás daquela budega. VAAAIIII!
Pedro
colocou o colchão embaixo do braço e correu o mais rápido que pode para a
budega da esquina.
*****
Lá
encima, Ezequiel, assistia a cena, suas gargalhadas ecoando pelo apartamento,
virava o rosto olhando de um mendigo para o outro, repetidas vezes.
*****
Joaquim
correu para a porta, abriu-a e correu para o elevador. Socava o botão do
elevador impaciente, repetindo como louco:
-
Vai! Vai!
O
elevador estava no térreo e demoraria uma eternidade para chegar ao sétimo
andar. Desistiu do elevador e correu desesperado para a escada pulando de
quatro em quatro, cinco em cinco degraus. Quando chegou ao térreo, correu para
a portaria socando violentamente o balcão, onde o porteiro dormia. Raimundo
acordou, pulando assustado:
-
"Qué" isso? "Qué" isso? - gritava o porteiro, olhando para
Joaquim.
-
Abre esse portão! - gritou, batendo novamente no balcão.
-
Que, que tá "aconteceno", "dotô"?
-
ABRE LOGO A DROGA DESTE PORTÃÃO.
Joaquim
debruçou-se sobre o balcão e apertou o botão que abria a porta de saída do
prédio. Em seguida correu para a rua, enquanto Raimundo ficava olhando
espantado em seu banco.
Já
na rua, Joaquim parou embaixo da janela e olhou em volta. Do outro lado da rua
estava um mendigo, fumando seu cigarro tranquilamente.
-
Você viu um colchão cair aqui? - perguntou Joaquim com um grito que Ezequiel
pode ouvir do sétimo andar.
-
Colchão? - o mendigo falou num tom que Joaquim pudesse ouvir.
-
Você é idiota? Meu colchão acabou de cair. O que você fez com ele? - começou a
caminhar para o outro lado da rua.
-
Hummm! - após uma longa tragada, o mendigo colocou a mão no queixo pensativo. -
Era um colchão de solteiro?
-
Isso! - já estava bem próximo.
-
E caiu agorinha mesmo "né"?
-
Isso! Onde está o meu colchão?
-
Hummmm! - continuava esfregando seu queixo, em seguida apontou para o lado
errado da rua. - O cara colocou o colchão na cabeça e correu desembestado pra
lá. Eu até tentei impedir, mas o cara devia ser maratonista. Nunca vi ninguém
correr como ele com um colchão na cabeça.
-
Pra lá? - a rua era longa e Joaquim ficou pensando se daria para o sujeito
chegar até a primeira esquina.
-
Isso! - o mendigo se livrou de sua piola e colocou a mão no ombro de Joaquim. -
O "dotô" num tem ai um cigarrinho pra mim, não?
Joaquim
enfiou a mão no bolso distraidamente, ainda olhando para o lado errado da rua,
quando tirou a mão derrubou uma nota de dois reais.
-
Não tenho. Descul...
-
Opa! - interrompeu o mendigo. - Não precisava "dotô". Pode deixar que
eu apanho para o senhor. Muito obrigado, viu?
Joaquim
se deu conta do dinheiro, mas era tarde o mendigo já o havia apanhado.
-
Tudo bem. - disse Joaquim, desanimado.
-
Sinto muito pelo seu colchão.
*****
Ezequiel,
lá encima, via seu irmão conversando com um mendigo enquanto o outro mendigo,
com o colchão espreitava a conversa atrás da budega, na esquina. O da budega,
olhava e se benzia. Ezequiel se divertia, assistindo seu irmão e os mendigos. O
do colchão pareceu perceber que Ezequiel assistia a tudo e apertou o colchão
contra o peito, preparando-se para uma possível fuga. Ezequiel olhou para
Joaquim e o mendigo a seu lado, depois para o outro escondido na budega e
decidiu. Fez um gesto para o mendigo, dizendo para que ele ficasse em silêncio.
*****
Pedro
suspirou aliviado atrás da barraca. Agora só lhe restava esperar que o sujeito
conversando com seu amigo, desistisse do colchão e fosse embora. Olhou para o
céu e agradeceu em silêncio.
*****
Joaquim
começava a se afastar do mendigo, quando se lembrou de seu irmão na janela.
-
Ezequiel! Ezequiel! - gritou ele.
Da
janela, Ezequiel perguntou o que ele queria erguendo o queixo e abrindo os
braços.
-
Cade? - gritou Joaquim abrindo os braços.
*****
Ezequiel
sentia um pouco de pena dos mendigos, mas o que ele realmente queria era provar
pro seu irmão, mais uma vez, que estava certo e ele errado. Abriu os braços e
ergueu os ombros dizendo, com isso, que nada sabia. Em seguida bateu com os
dedos nas costas do seu punho fechado, sinalizando para seu irmão que ele
estava atrasado.
*****
Joaquim
suspirou, cansado, havia desistido. Despediu-se do mendigo e seguiu para a
porta do seu prédio.
*****
Pedro
vibrou pela segunda vez. Estava perto demais de concretizar o início de uma
nova vida.
*****
-
Obrigado "dotô". Da próxima vez, juro que dou um jeito, mas não deixo
o sujeito fugir. - disse Lucas, voltando a sentar no chão.
-
Tá. Tá. Adeus. - o sujeito virou-se e foi embora.
Lucas
esperou a porta do prédio se fechar, apanhou sua mochila e começou a caminhar
em direção a budega. Pedro estava lá com seu colchão.
-
Vamos. Temos que sair daqui, antes que o sujeito apareça na janela e me veja. -
disse Pedro, olhando a janela assustado.
-
Ok! Vamos por ali. Sei de um cara que vai pagar uma nota por esse colchão.
-
O que? Você acha mesmo que vou vender meu colchão?
-
Hahaha. Vamos não vou nem discutir isso com você. Preciso de cigarros e você
precisa de sua pinga. O que pensa em fazer? Conseguir um trabalho?
Caminharam
na direção que Lucas indicara, Pedro estava cabisbaixo e silencioso.
-
Tá bom. Tá bom. Não venderemos o colchão. Quais são seus planos? - disse Lucas,
tentando reanimar o amigo.
-
Não. Você está certo. Estou morrendo de sede e o colchão não é só meu. Vamos
dividir a grana. Você acha que esse cara trabalha no domingo?
-
Não sei. Isso vai depender de, ele ser ou não um trouxa.
-
Não entendi.
-
Deixa pra lá. Vamos embora.
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