Num domingo de verão, à tarde, no Anhagabaú, o vento sopra
fresco, como se o tempo o houvesse economizado a semana inteira, não entregando
às centenas de transeuntes que são obrigados a trafegarem por ali, guardando-o
para nós, que estamos aqui por prazer, que trazemos nossos livros, nossas
namoradas, nossos pensamentos para desfrutar desse cenário tão meticulosamente
arquitetado. E foi em um destes domingos que vislumbrei, pela primeira vez, um
sentimento que mesmo muitos anos depois, não viria a nomear ou distinguir.
A brisa soprava insistente, tentando virar as páginas do meu
livro, o que fazia com que tivesse de segurá-lo com as duas mãos. À minha
frente, um pouco distante, skatistas arriscavam suas manobras em degraus que
serviam, em outros momentos, como bancos, guardas conversavam em um posto
policial mais a frente e algumas crianças e cachorros corriam e saltavam em
frente a seus donos e pais. Reparei que, pela terceira vez em menos de cinco
minutos, aquele homem passava a minha frente. Olhou para meus sapatos que
estavam fora dos meus pés, minha mochila aberta a meu lado, o livro que eu
tentava ler e depois me olhou. Notou que eu o encarava, mas não se deixou intimidar
por isso, sentou-se a uns dez ou quinze metros de costas para mim, ficou ali
por uns instantes e saiu. De rabo de olho o acompanhei enquanto dava a volta
na área onde eu estava, que era uma figura geométrica indistinguível limitada
de todos os lados por uma cercazinha de uns trinta centímetros de altura, havia
algumas palmeiras pequenas e alguns arbustos. Fechei o livro e o pus na
mochila, fechando o zíper rapidamente. Ele aproximou-se e parou a meu lado.
Fedia, estava sujo e trajava farrapos. Olhou em volta enquanto eu apertava a
correia da mochila e media a distância entre minhas mãos e o par de tênis a
minha frente. Ainda sentado, encarei-o irritado e ele esboçou um sorriso cínico
no canto esquerdo dos lábios feridos. Mostrei o posto policial com um gesto de
olhos e reparei seu sorriso cínico se espalhando por toda boca imunda.
Aproximou-se um passo e resmungou:
- Está se borrando de medo, garoto. - sua voz parecia a
minha, quando acordava de ressaca.
- Não tenho nada aqui, só livros e um caderno. - apesar de
todo meu esforço para falar alto, a voz saiu baixa e trêmula.
- Presta atenção! Se você não me entregar tudo agora, vou
bater em você até você ficar mole. - ele estava sujo como um mendigo, vestia-se
como mendigo, fedia com mendigo, mas falava educadamente.
Os policiais nos olhavam, mas isso parecia não fazer
diferença alguma para ele.
- Cara, a polícia está bem ali. Você não tem chance alguma. Vai embora!
- Anda moleque. - deu um chute de leve nos meus pés e os
policiais começaram a vir em nossa direção.
- Cara, o que você está fazendo? - eu já estava
realmente assustado e não conseguia me levantar.
- Porque eu posso. - disse isso enquanto pisava com força em
minhas pernas - seu franzino metido a bosta do caralho.
Abaixou-se e desceu seu punho como um martelo, raspando
minha testa e minha orelha direita até parar em meu ombro, o que me fez abaixar
mais na grama e tentar, em vão, me virar para escapar. Um de seus pés
continuava prendendo minhas pernas e a dor me impedia de fugir. Mais socos
vieram, caindo feito pedras, passando por entre meus braços, atingindo meu
rosto, minha cabeça, meu peito. Notei que tinha soltado minhas pernas, pois
agora além dos socos vinham chutes, por um instante pareceu-me que estava sendo
espancado por três ou quatro homens. Senti o estalo de ossos em minhas costas,
não havia mais oxigênio no ar. Nem sabia mais distinguir se estava com os olhos
abertos ou fechados, clarões coloridos rasgavam o céu e o chão. Trovões ressoavam
dentro e fora de mim. Meus braços continuavam balançando em vão, os socos e
chutes não cessavam, o tempo havia parado e as pancadas vinham de qualquer
lado. Parecia-me impossível que isto estivesse acontecendo, custava a encontrar
um motivo para estar apanhando e não encontrava. Nem sabia onde estava, nem
quem era. Havia um gosto salgado em minha boca e meu rosto estava completamente
molhado, tinha também uma pedrinha que rebatia entre meus dentes. Queria perder
os sentidos, desmaiar. Mas o tempo estava parado e tudo que existia eram socos
e chutes e sangue e uma pedrinha em minha boca, não, duas e dor, muita dor, que
começava das minhas costelas ia para meu peito e acabava por se aninhar lá no
fundo da minha alma. Em seguida fui jogado para frente e rolei na grama parando
de bruços. Um instante depois vi que os policiais o haviam tirado de perto de
mim, mas penavam para derrubá-lo, ele resistiu com alguns socos no ar, para
depois ser acertado por um cassetete e derrubado de bruços na minha frente e
com o rosto virado para mim. Olhava-me e sorria, apanhando enquanto eu
procurava meu dente quebrado, na pequena poça de sangue que eu havia cuspido a
minha frente. Ouvia as pancadas abafadas que eram dadas em suas costas e não
tinha forças para me erguer. Um cachorro veio me cheirar e seu dono veio em
seguida tentando afastá-lo, desisti de me erguer e deixei meu corpo pesar sobre
a grama. O outro continuava apanhando, sorrindo e me encarando, ao que eu não
conseguia desviar o olhar. Desejava estar em casa, desejava que tudo acabasse,
perder os sentidos ou morrer, qualquer coisa que me livrasse daquele pesadelo.
Mas a dor me mantinha acordado e aquele sorriso era como uma farpa na pele,
pequena demais para ser arrancada com a pinça, como um parafuso enferrujado e remoído
que jamais vai ser removido.
Os policiais puseram o sujeito de pé e um deles veio em
minha direção.
- Você está bem, rapaz? Já chamamos uma ambulância. O que
esse cara queria? Por que não nos chamou logo?
- Não sei. Eu não sei. - e as lágrimas vieram se juntar ao
sangue em meu rosto.
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