Boiando à mercê

Fico largado em mar raso
Deixando que as ondas brinquem comigo
Ondas lindas e perfeitas
Uma delas, qualquer uma, pega-me e leva, eu deixo.
Sou girado, torcido, submerso e jogado à ressaca semi-morto.

Acordo e fico a reclamar que não era a onda certa.

NEGava

Por trás de qual córtex ele se esconde agora?
Avisto-o as vezes.

Por onde anda o maluco?
Brigava por tudo e com todos.
Inconformado
Pela pequena peça no tabuleiro de war
Para mudar de canal durante a novela
Para ligar a TV durante o programa eleitoral
Os que o conheceram,
O amavam ou odiavam-no.
Ateu, marxista
Rockeiro amante de MPB.

Palestrava em aulas do ensino médio
Para gaiatos desinteressados.
Urrava, batia e pisava convocando-os:
"Segurem as faixas, digam NÃO a ALCA,
Uma revoluçãao é possível,
Mas deve vir de dentro."

Hoje não tem opiniões,
Acomodou-se encima do muro,
Só conhece o meio termo,
Engessaram-no, engessaram-me.

Ainda o vejo em manhãs de domingo ao acordar.
Tomamos uma vodka juntos,
Amordaço-o novamente e tranco a porta de sua jaula.

Tickets de ônibus não compram ingressos


O dia de trabalho foi interessante apesar de tudo. Um desses trabalhos repetitivos que não exigem muito  do intelecto, esgotam completamente os seus sentidos e pagam pouco. Fazer o que? É sempre nessas horas que acabo escrevendo. Quanto mais exausto e insatisfeito melhor.
Passei no minimercado comprei umas latinhas e sentei-me na entrada do prédio para ler. Bukowski, impagável como sempre me arrancando algumas risadas, nunca me decepciona. Um daqueles contos que te fazem remeter a infância.

***
Não lembro muito bem o ano, mas sei que cursava o ensino médio, RPM havia reunido a formação original e estava em turnê. Putz, iam tocar na minha cidade e o ingresso custava 40 paus, mas eu era estudante e só pagava 20. Lógico que não tinha um puto no bolso. A moeda corrente em minha carteira eram os tickets de ônibus. Usava para comer, beber e até para comprar amigos na escola, as vezes usava no ônibus também. Não era justo perturbar a mãe pela grana, ela já tinha despesas o suficiente com minha irmã e eu. Ia ter que recorrer ao meu pai, era um saco mas não perderia esse show por nada.

Alguém tinha me dito que ele adorava RPM quando era jovem, então fazia sentido contar-lhe a verdade mesmo.

- Oxe! Tá fazendo o que aqui hoje? - ele já tinha sacado a porra toda, estava perdido.
- Ué! Vim visitar, ver a Telma, a Andressa, o senhor...
- Tá bom! Vai lá dentro e apanha meu cigarro encima da TV.

Como eu odiava essas pequenas ordens, acho até que foi por causa delas que acabei não voltando para casa, depois das férias da 8ª série. Sim, isso e o fato de minha madrasta grudar uma lista de afazeres domésticos na porta do meu quarto. Apanhei o maldito cigarro e o entreguei, havia desistido de pedir a grana.

Ele acendeu o cigarro calmamente com aquele seu isqueiro de mulher pelada, você o virava em outro ângulo e a mulher da foto acenava pra você abrindo as pernas. Nem fazia quinze minutos que eu estava ali, já estava furioso e pensava num motivo pra dar o fora.

- Entao... vai ter um show do RPM e queria saber se o senhor não me emprestava a grana do ingresso e mais uns trocados para eu curtir lá - simplesmente saiu.

Ele entendeu o recado, ia comprar a briga. Hoje em dia até posso imaginá-lo sorrindo por dentro. Deu aquela tragada profunda em que demorava meio século para soltar a fumaça, bateu com o dedo no filtro para derrubar a cinzas na calçada suja, liberou meio mundo de fumaça pelo nariz bem de-va-gar-zi-nho e falou:

- Você já notou que a vizinha da frente não sai do terraço quando você vem aqui?

Naquela época ele morava numa vila, casas de ambos os lados, com seus terracinhos e uma porta na frente mas que se revelavam bem compridas para dentro. De fato a menina ficava lá no terraço da frente o tempo inteiro e eu desviando o olhar a todo momento para não ficar vermelho. O comentário tinha me tirado do sério e feito com que me arrependesse do instante em que tive aquela idéia estúpida.

- Quer saber? Deixa pra lá... Eu acho que nem ia dar pra ir por que tenho prova na segunda e vou ter que estudar... Vou indo... Manda um beijo pra Andressa e...

- Tenho uma mudança pra fazer amanhã, dispenso um dos ajudantes e coloco você em seu lugar, pago o dobro e te deixo lá na casa de sua mãe quando acabar.

- Topo! Vou telefonar pra mãe e dize que vou dormir aqui...

O show valeu cada gota de suor. O trabalho, pensando bem, nem foi tão duro assim. E passar um tempo com o velho enquanto trabalhávamos ao invés de ficar arrumando assunto sem sentido para tentar manter um diálogo, até que foi bem legal.

Achei que escreveria alguma coisa engraçada sobre a vergonha de ser flagrado por um dos amigos da escola descarregando um caminhão de mudança. Mas acho que acebei apenas com um pequenino conto sobre uma vez em que aprendi alguma coisa com meu pai. Uma coisa que essas três latinhas não me deixam ver claramente o que é, mas está lá, sempre estará.

Girar e fazer

Quero ser atingido
Recuo no último instante.
Quero cegar
A água vem e fecho o olho.
Quero a verdade
Respondo não.
Espero sair de mim, vivenciar
Isso é o que eu temo.

Talvez se eu apenas girar
Realmente fique tonto
E faça.

Gênio filho da puta


- Nada dessa merda faz sentido!
- Lógico que faz! Continua, está ótimo.
- Ótimo? É um lixo, uma perda total de tempo. Eu vou parar. Não sou maluco.
- Pára de reclamar, cara. Continua! Estava indo muito bem.
- Mas não faz sentido.
- Faz todo sentido do mundo. Está perfeito, venderá milhões.
- Então me diga. Por que parar o tempo? O poder dele deveria seria voar, foi assim que eu imaginei. Tínhamos combinado que eu decidiria tudo.
- Mas foi você quem decidiu, ele pára o tempo para comer as menininhas. Venderá milhões cara. É perfeito. Você é um gênio.
- Sou uma merda de um idiota. Nunca deveria ter aceitado escrever isso para você. Não faz o meu estilo. É uma perda total de tempo. Eu deveria ser um gênio, cara. Um gênio!
- Escuta, onde tínhamos parado? Quantas trepadas já tem? Esse cara é um vulcão, fala sério. Você é um gênio, cara.
- Tá bom, vamos acabar com isso... Ele comeu o rabo da chefe dele...
- Isso. Essa cena é perfeita, quer dizer? Quem não gostaria de parar o tempo e lançar a trolha no rabo de sua chefe?
- ... que seja. Ele comeu também a mocinha que trabalha no pet shop que fica em frente a sua casa.
- Nossa! Essas menininhas são foda heim cara? Entende o que estou dizendo? Está cheio delas por ai, com essas minissaias mostrando a beirada do rabo. Fico de pau duro só de imaginar...
- Deixa eu terminar!
- Anda cara, vai lá, me faz gozar bem aqui no seu sofá. Sou todo ouvidos.
- Você é doente. Agora entramos na parte onde ele tem uma crise de consciência por que acaba de notar em que está se transformado. Quer dizer ele virou um estuprador do tempo, cara. Ele tem um dom divino e desperdiça isso por ai comendo menininhas gostosas ao invés de salvar o mundo...
- CARA! Pára bem ai. Cala essa boca, agora!
- ...
- Sabe o que você acabou de fazer?
- Uma virada.
- Não meu amigo, você acabou de me fazer broxar. Sabe a quanto tempo eu não sei o que é uma broxada? Agora vou chegar em casa e dizer para minha esposa: "Querida me desculpa, depois de 10 anos de casamento, é isso, acabou. Não consigo mais trepar." Ela vai ficar feliz?
- Não... eu acho.
- Bingo! E eu quero fazer minha mulher muito feliz, meu amigo. Agora presta bastante atenção! Crise de consciência? Ps', esquece isso, você é um gênio cara. Um verdadeiro gênio. Eu sinto isso do pelo do meu cú até a gota de suor na testa do meu cachorro de estimação. Então vamos pensar um pouco mais sobre essa tal crise de consciência ai, está bem?
- Tá bom, cara. Já vi que você odiou, vou refazer a merda toda. Eu não sirvo para isso cara, meu deus. Deveria ser um gênio e olha pra mim. Às voltas com um maniaco estuprador que controla o tempo... Eu me demito, cara.
- Ei, ei ei! Olha pra mim! Pára com essa merda. Esse não é você. Você é um gênio, ouviu isso? Eu te conheço rapaz. Você é o melhor de todos nós. Só está estressado e eu entendo isso. Faz quanto tempo que você não dá uma boa trepada?
- Olha! Façamos assim. Vou arrancar esta página, fingimos que nada disso aconteceu, escrevo mais quarenta minutos de cenas pra você. Vejamos... O cara nota que além de parar o tempo, ele também consegue voltar e avançar.
- Fiquei arrepiado!
- E ele decide voltar a época do ginásio, só para comer a professora gostosa e a líder de torcida que não dava nem bolas pra ele...
- Cara, olha quem voltou! Diga oi ao Junior aqui! Tá ficando durinho de novo. Puta que pariu! PUTA QUE PARIU! Seu gênio filho de uma puta. Tá me ouvindo, cara? Você é uma porra de um gênio filho da puta. Sucesso total. O que? Rico? Quem? Nós? A sim, somos, claro que somos. E tudo graças a esse gênio filho de uma puta que está aqui na frente de vocês.
- Você é engraçado, seu maluco.
- Já te falei que toda vez que venho aqui vou embora de pau duro? Volto no sábado pra pegar esse roteiro ganhador do Oscar. Deus te abençoe! Amém! Seu gênio FILHO DA PUTA!

Fecho a porta atrás dele. Vou até o bar em busca de whisky. Sirvo uma dose cavalar e sento-me diante da minha maldita máquina de escrever. Odeio minha vida... Mas agora não tenho tempo pra essa besteira de crise existencial, preciso voltar no tempo e transar com a minha professora do ginásio e a vaca da Alícia. Acho que termino antes de começar o jogo. Fodam-se todos vocês por me julgar. O mundo continua ruim, os bêbados continuam bebendo e eu continuo fazendo o que tenho que fazer.