A última fuga frustrada do feioso

Lembro-me como se fosse ontem, aliás, como se estivesse acontecendo neste exato instante, estava sentada no batente daquele café, deviam ser entre sete ou oito horas da manhã, o dia estava lindo, o sol brilhava e fazia aquele friozinho típico de junho em São Paulo. Ouvi uma voz rouca e macia que a princípio me pareceu familiar, mas logo descartei essa possibilidade, era apenas um desconhecido passando: 

- Bom dia Dna. Inês! - como não houve resposta o dono da voz afastou-se. 

Pensei em virar-me e questionar por qual motivo Dna. Inês não pode responder, mas estava muito distraída com aquele animalzinho peculiar. Um cachorro com um focinho muito interessante que usava uma coleira prendendo-o a algum lugar que no momento eu também ignorava. Ele tinha aquele focinho achatado, como se tivessem apertado a cara dele contra a parede e respirava ruidosamente. O barulho era como de alguém gripado tentando sempre mandar aquele catarro para fora de si. E lá estava ele com quase um palmo de língua para fora, já havia até uma pequena poça de baba formada embaixo de sua boca. Ele olhava para mim fazia aqueles barulhos estranhos virava-se na outra direção e continuava a fazer seus barulhos. 

De repente ouvi um estalo ensurdecedor vindo de trás de mim, virei-me o mais depressa que pude e notei o rapaz do café, um funcionário, um garçom, ele apanhava uma colher ou um garfo, não sei dizer ao certo, tamanha foi a velocidade com que ele capturou o objeto. Tendo o talher em punho, imediatamente o atirou a pia, fazendo um barulho ainda maior, gesto pelo qual tive o maior prazer em repreendê-lo. 

- Que modos são esses, meu jovem? Onde o moço acha que está, em plena guerra? 

Ele sorriu e desenhou a palavra perdão com os lábios, sem produzir som algum. Achei seu gesto um tanto inusitado mas aprovei afinal, nada melhor do que o silêncio. Enfim, senti um leve repuxar em minha cadeira e foi exatamente esse puxão que me fez notar o enorme mal entendido que estava ocorrendo, aquele pobre cão de aparência tão horrenda e modos exemplares estava preso em minha cadeira pela sua coleira. Pobre animal, impossibilitado de pedir socorro, ficava apenas me encarando esperando o momento em que eu notaria o descuido de seu dono seja lá quem fosse o irresponsável. 

Já estava bem encaminhada no processo de soltura do animal, quando outra voz me interrompeu. 

- Bom dia Dna. Inês? E o Apolo como está? - Dna. Inês não deveria estar tendo um dia fácil, pensei comigo, pois também não respondeu a cortesia do transeunte. 

Fiz uma anotação mental ‘lembrar-me de investigar o que mantinha a Dna. Inês tão ocupada’, assim que concluísse a libertação do meu amigo feioso. Bolei uma estratégia perfeita em seus pormenores para a imediata soltura do bicho, mas novamente fui interrompida. Dessa vez, pelo menos, a interrupção veio a calhar, pois era o aviso do gentil garçom de que meu café com leite já estava pronto e ele só estava esperando ficar na temperatura ideal para me servir. 

Calculei que isso levaria um minuto e meio ou dois, o que era tempo mais do que suficiente para executar o meu plano. Então o pus em prática, como o animal estava exatamente preso ao redor da roda dianteira esquerda de minha cadeira, iria levá-la exatamente ao ponto da calçada onde apenas essa roda iria ficar livre, mantendo assim meu equilíbrio e ao mesmo tempo liberando a coleira do medonho, porém simpático, bicho. Aproximei calmamente a roda do final da calçada, não sem um tremendo esforço de minha parte, é claro, gesto ao qual o feioso (passei a chamá-lo assim, por não ter sido informada do nome da criatura) permaneceu indiferente. Ao final de mais meia volta da roda traseira, a roda dianteira já estava praticamente livre, eis que o garçom intrometido decidiu me avisar que o café estava no ponto. Algo em minha intuição falava pra esconder meus planos desse jovem, pois não tinha a confirmação de que ele fosse de confiança, então agi normalmente virando minha cadeira em sua direção e aguardando que ele servisse meu café com leite morno e meus biscoitos de forno, como estava devidamente instruído a fazer. 

Após essa leve e rápida refeição, a que nosso amigo feioso teve de esperar, e o fez sem nenhuma reclamação devo acrescentar, pus o plano de soltura em curso novamente. Aproximei a cadeira o máximo que pude liberando apenas uma das rodas e foi imenso meu alívio e o do animal também, assim o creio, notar que a coleira havia caído livre da cadeira. Trouxe minha cadeira a seu devido lugar e restabeleci a ordem das coisas. Só após me recompor do esforço notei que o animal permanecia impassível em seu lugar. Mesmo solto parecia estar disposto a gastar seu tempo aumentando a poça de baba. 

Na ânsia de chamar a atenção do animal para o fato de estar livre, atirei algumas migalhas do meu biscoito em sua direção para que ele tentasse comer e assim caminhasse para longe, o que foi totalmente inútil, tanto pela distância em que consegui atirar as migalhas, quanto pelo fato do animal ter ignorado completamente o meu gesto. Tentei emitir sons que fossem familiares ao feioso, outra tentativa inútil, além de um tanto constrangedora para mim. Além de ignorar todos os meus gestos parecia desconhecer assovios ou estalos de língua. Jamais havia conhecido animal tão estúpido. Decidi que o melhor a fazer era desistir do bicho e deixá-lo a mercê de sua própria sorte. 

Alguns instantes depois apareceu um pequeno jovem, muito bonito e muito parecido com meu filho mais novo, cogitei que talvez fossem amigos, ele aproximou-se dizendo: 

- Bom dia, vovó. Como a sra. está hoje? - ao que eu achei um tremendo disparate, afinal não o havia dado tal intimidade e por mais que tivesse, o que passara em sua cabeça para chamar uma mulher da minha idade de avó? 

- Meu filho, sua mãe não lhe ensinou boas maneiras? Pensa que pode sair por ai assim, chamando toda mulher de avó? 

- Xi, vó, já esqueceu de novo. Sou eu Plínio! 

- Não me venha com xí, nem meio xí. Exijo saber quem são seus pais imediatamente. Esse atrevimento não vai passar sem um bom corretivo. 

- Tá bom vó, ‘vamo’ lá no papai, que sempre que a Sra. o vê, sua memória meio que volta, sei lá. 

- Meu jovem, não vou a lugar algum até que seus pais venham aqui me dar uma ótima explicação para tais maneiras. 

Mas o jovem ignorando completamente todas as minhas reivindicações pôs-se a empurrar minha cadeira, ao que pude ouvir o garçom dizer: 

- Até mais tarde Dna. Inês, ‘tô’ esperando a Sra. aqui pro seu chá da tarde! 

O jovem abusado que empurrava minha cadeira ainda teve a audácia de me recriminar por soltar o animal e ousou afirmar que a criatura medonha me pertencia. 

- Oh vó, a sra. soltou o cachorro de novo? Se ele fugir, dessa vez não vou atrás, quero nem saber. 

Quanto abuso eu ainda teria de agüentar até que alguém me explicasse tal situação? Passado algum tempo, chegamos ao apartamento de número cento e um, entramos e logo na sala uma figura me pareceu familiar. Tratava-se de um homem, em seus trinta e poucos anos, traços muito parecidos com os do meu falecido marido. É verdade, só agora me voltava à lembrança de que meu Alfredo já não estava mais comigo. Apanhei o cachorro em meu colo e li em sua medalha de identificação, Apolo. O animal me havia sido dado por Alfredo, meses antes de sua morte. Aquele homem de seus trinta anos parecia-se com ele porque era meu filho mais velho e o jovem insolente era realmente meu neto. De repente uma chuva de pequenas lembranças começou a emergir de minha mente, coisas engraçadas e tristes, fatos interessantes e outros insignificantes, momentos da minha vida que a pouco eu ignorava completamente. As lágrimas foram inevitáveis, pedi ao jovem que me conduzisse até meu quarto onde fui rever objetos e retratos antigos. 

Essa foi a última vez que recobrei a memória por inteiro e mal pude fazer uso dela. Sei de tudo isso e me recordo agora, pois onde estou não existe mais uma consciência cronológica e nem há, tampouco, necessidade de tal. Não se faz necessário saber o que veio antes ou depois. Agora sou apenas um fio de consciência solto no espaço e a companhia daqueles que amo, carrego em mim. Absolvi a mim mesma dos meus pecados e sigo em frente, para os lados, para cima e para baixo, misturando-me ao cosmo ou qualquer outra coisa de que seja feito o universo.

Minha última amnésia alcoólica

Houve aquele estalo conhecido, uma leve vacilada das luzes e a velha geladeira começou seu zumbido rotineiro. Era domingo de manhã, ou quarta-fera, talvez terça... Era de manhã e fazia um frio de lascar. A ressaca não me deixava levantar, a não ser para cambalear até o banheiro e colorir o vaso com meu vômito. Minha cabeça ia e vinha, e a cada vinda trazia consigo uma paulada de dor no meio dos olhos. Ergui-me sobre os cotovelos numa tentativa de enxergar o horário, mas aqueles seis ponteiros insistiam em uma coreografia louca, desisti. Nesse momento fui arrebatado por uma dúvida. Estava erguido sobre os cotovelos, coçava a nuca e retirava remelas do meu olho direito. Como poderia eu, tendo apenas dois braços, ser capaz de tamanha façanha? Coloquei-me na frente do espelho. Estava nu e possuía dois pares de braços, antebraços e mãos. Fui tomado por uma tontura nauseante e caí de joelhos lançando um jato que continha os últimos aperitivos da noite anterior. Levantei-me com ajuda da parede e fui ao banheiro, tentando não pensar no assunto. Retirei o último grão de arroz de dentro do nariz, coloquei água para ferver e lavei o rosto. Precisava de um café forte, ou alguma carga de álcool. 

Era preciso que me lembrasse urgentemente de como havia ganho aquele par de braços extra. Comecei a recapitular a noite anterior. Tinha comido pizza, blá, blá, blá, blá, tomado umas cervejas, blá, blá, blá, blá, arroz, ou alguma coisa parecida, blá, blá, blá, blá, bebido um pouco mais, talvez vodka ou whisky e, no caminho de casa... foi isso... No caminho de casa, havia encontrado alguma coisa. 

Voltei até o quarto e comecei a vasculhar os bolsos das roupas da noite anterior. Duas notas de dez reais amassadas e algumas moedas, totalizando vinte reais e trinta e cinco centavos, minhas chaves jogadas ao lado dos tênis imundos, minha carteira no canto da parede com os documentos espalhados quase encostados no vômito, e ali, bem ali, em cima da minha TV de catorze polegadas, uma coisa estranhíssima, em se tratando de mim, é claro. Uma garrafa long neck de cerveja, lacrada. Eu havia encontrado aquela garrafa na rua, até ai tudo bem, mas o que tinha isso a ver com minha mutação? Foi ai que notei outra extravagante diferença em meu corpo. Meu pinto tinha aumentado pelo menos uns dez centímetros e também estava mais grosso. Lembrava-me de ter aberto a garrafa e alguma coisa havia acontecido, luzes e um homem espalhafatosamente vestido apareceram. Só podia ser um gênio. Um gênio na garrafa de cerveja? Então era óbvio que estes tinham sido meus pedidos. Será que havia um terceiro? Minha memória estava vazia. 

Apanhei a garrafa com minha mão superior direita e comecei a forçar sua tampa, aos poucos senti um leve tremor vindo da garrafa. A tampa se desatarraxou sozinha caindo em minha mão superior esquerda, e do gargalo começou a espumar cerveja nervosamente banhando meus braços. Pus a long neck no chão e fiquei a observar. E espuma desenhou um circulo perfeito ao redor da garrafa e uma voz ecoou em meu quarto. 

- Ai, meu deus. Ai, minha nossa senhora. Quem diabos me incomoda a essa hora? 

Fiquei em silêncio, boquiaberto observando o individuo velho e maltrapilho que se levantava em meio à espuma de cerveja. 

- Ai diabo, vai colocar uma roupa moleque! – gritou para mim o gênio-bebum – Eu não sou obrigado a acordar de ressaca olhando pra essa coisa pendurada ai rapaiz! Pelo amor de Deus, tenha modos! 

Instintivamente, minhas mãos inferiores se puseram a guardar meu instrumento enquanto eu apanhava minha calça. 

- Ora, mas que porra de trabalho é esse que eu fui arrumar? Num tem uma droga de uma cadeira nesse muquifo aqui não, oh muleque? 

- Calma, seu gênio... 

- Calma seu o QUE? SEU GÊNIO? Sua mãe não te deu educação não, oh criatura? Nem pergunta meu nome e sai por ai me chamando de gênio. GÊNIO É O RAIO QUE O PARTA! 

- Calma seu... 

- OOOOH! – balançou o dedo em minha direção. 

- Como é que o Sr. se chama? 

- Eu não me chamo não rapaiz, os outros é que me chamam. – e soaram tambores vindos de qualquer lugar, imitando um ‘stand up comedy, "tu-dum-tssss" – HaHaHa! Fala pra mim, essa foi ótima, heim? 

Ensaiei um sorriso com o canto dos lábios enquanto fechava o zíper da calça, fui até a cozinha, peguei a cadeira de ferro onde eu fazia minhas refeições e a entreguei ao... a... enfim, coloquei lá para ele se sentar. E o bebum continuou: 

- E não oferece uma bebida? Tá ruim de receber alguém assim, viu? Desse jeito vai ser difícil de conseguir usar seu novo instrumento. 

Fui até a geladeira, apanhei uma latinha e atirei para ele. Enquanto o gênio-bebum-seja-lá-o-que-for, trabalhava em sua latinha, corri até a cozinha e sincronizadamente meus braços se puseram a fazer suas tarefas. Enquanto um apagava o fogo onde a água do café já havia evaporado, o outro desligava o gás que vinha do bujão, o terceiro abria a torneira enquanto o quarto punha a panela sob a corrente de água fria. Voltei à sala. 

- Mas e ai, meu jovem, já pensou bastante? – disse-me o bebum, já mais tranqüilo. 

- Pensei em que? – indaguei eu, cá do meu canto. 

- Xiiii... Amnésia alcoólica. Conheço de longe. 

- Espera. Você deve estar falando do meu terceiro desejo... 

- Opa, chegou perto, vou dar mais uma chance. Seu terceiro pedido foi, uma geladeira com reserva infinita de cerveja, de qualquer marca, tamanho e modelo. Eu também costumava esquecer-me de tudo no dia seguinte. 

Eu era uma interrogação, sem camisa e com quatro braços, estática no meio da sala. 

- Okay! Simplificando, estamos falando do seu quarto e último desejo, meu jovem. Como eu sei que estou tratando com um novato que não sabe beber, vou repetir toda a ladainha de ontem. Preste bastante atenção, porque é sua última chance. Você tem direito a mais um pedido, sendo que o, cumprir ou não cumprir deste pedido, cabe a mim e apenas a mim. Ou seja, depende única e exclusivamente da minha boa vontade. Conselho: eu só realizo desejos que eu ache interessantes e originais. E que sejam coisas que o pedinte realmente queira, nada de coisinhas bonitinhas e profundas pra agradar quem quer que seja. Então garoto capricha e vamos acabar com isso que eu to louco para tomar uma. 

Pus-me a caminhar de um lado para o outro da sala, pensando e pensando. Vinham em mente carros, dinheiro, ex-namoradas, sucesso, fama e toda a sorte de coisas, mas nada me parecia interessante o suficiente para ser aceito por aquela criatura. O bebum ergueu o indicador e com a outra mão mostrou-me uma segunda cadeira de ferro, em seguida fez surgir entre nós uma mesa, e foi até a geladeira buscar uma cerveja e dois copos. Pusemo-nos então, a bebericar e conversar sobre a sua e a minha vida. Ele me contou de outros bebuns que havia atendido e sobre suas tentativas esdrúxulas de pedir coisas fúteis, desnecessárias e impossíveis (uma vida sem problemas, vida eterna, a paz mundial, o fim da fome na áfrica o fim da corrupção no Brasil), me contou também que nenhum conseguira aproveitar os quatro desejos e que às vezes ele até achava a idéia boa, mas não concedia o pedido só pra manter a tabu. Eu contei-lhe sobre minhas desventuras amorosas, sobre meu desejo de um dia escrever algo que prestasse, até o obriguei a ler alguns dos meus textos, os quais ele reprovou prontamente. Exceto um onde eu narrava a estória de dois mendigos perseguindo um colchão, ao fim do qual ele esboçou um leve sorriso. Eu gargalhava e batia na mesa enquanto contava-lhe uma piada e ele cambaleava pela sala imitando seus antigos amos. E quebramos duas ou três garrafas. Quase todas por minha culpa, pois ficava cada vez mais difícil coordenar meus movimentos com tantos braços. Ele caiu em prantos enquanto me falava de sua última esposa, uma gênia-drogada que havia morrido de overdose enquanto atendia um amo, ídolo do rock internacional. E eu chorei como um neném enquanto lhe falava do meu pai e de quanto eu sentia sua falta. 

..... 

Algumas horas de conversa depois eu devo ter adormecido por cima da mesa e depois caído em meio as garrafas, pois foi assim que acordei, era noite e minha cabeça doía mais do que nunca. Após um banho, uma xícara de café, uma latinha e algum descanso, lembrava-me perfeitamente da bebedeira, parei para pensar no meu último desejo “Droga, deveria ter desejado nunca mais ter ressaca ao invés disso.”

Sangue e barro

Chico pequeno, como todos lhe chamavam, chutava feliz sua bola remendada, naquela rua vermelha. Por cima dos trapos vestia uma fina camada de barro e quando não estava brincando sozinho, arrastava sua barriga inchada para cima e para baixo, disparando as piores ofensas do seu, quase infinito, repertório. Chico não tinha amigos, espantava a todos, era o dono da bola e não aceitava a derrota sem quebrar um nariz. Mesmo os garotos maiores o deixavam em paz. Assim passava suas tardes, seu pai não se intrometia em sua criação, era da feira pra casa, de casa pro bar, sua mãe passava o dia lavando a roupa de suas clientes e falando da vida alheia com as vizinhas. Vez ou outra apareciam um ou outro garoto tentando compartilhar a companhia de Chico, experiência que se mostrava cada vez menos bem-sucedida ou corriqueira. Parecia extremamente difícil e cansativo para os outros garotos fazerem sempre papéis secundários nas brincadeiras absurdas de Chico, que através de sua imaginação perturbada criava situações em que interpretava o amante sorrateiro fugindo à perseguição de um marido ciumento, ou um bandido astucioso fugindo à captura da polícia corrupta. E pobre do garoto que insinuasse uma apreensão ou coisa parecida, este iria para casa com péssimas recordações e algumas cicatrizes. 

Era chegada a puberdade e Chico tinha uma aparência cada vez mais grotesca, seu rosto era cheio de espinhas, fedia e vestia trapos, jamais mencionou ou sequer pensou em frequentar a escola. Era totalmente ignorado pelas garotas da sua idade e as poucas que o notavam sentiam nojo e repulsa, o que Chico retribuía com insultos e ofensas, quando não, pedradas e ameaças. E assim passou-se a infância daquela criatura. 

Já adolescente, aos dezesseis anos, Chico ia sozinho ao centro da cidade praticar pequenos furtos e até alguns assaltos para conseguir dinheiro e sustentar seu novo vício, o crack. Caminhava com os olhos vidrados, sem encarar ninguém e sem olhar fixamente para coisa alguma. Enquanto andava seus olhos corriam todos a sua volta em busca de uma potencial vítima e uma maneira simples e prática de financiar sua próxima ‘latada’, como chamava sua diversão. E assim passavam-se os dias para Chico, entre furtos, assaltos, latadas e mais latadas, após saciar seu vício sentava-se em frente ao portão e observava os passantes, divertia-o fazer caretas para as pessoas e observar suas reações. Ali Chico deixava o tempo correr, aguardando o próximo chamado do crack, para então recomeçar seu trajeto a procura da próxima vítima. 

Chovia naquela noite de São João, quando Chico voltava com seus saltos bêbados de poça-em-poça. Aproximou-se um pouco da sua casa e ouviu gritos, sua mãe apanhando, pra variar. “Aquele demônio, já está bêbado de novo”, pensou. Correu até a casa e abriu a porta com um chute. Viu sua mãe no chão ensangüentada e seu pai no canto da sala com uma faca e uma calibre 38 nas mãos. 

- Matei essa vadia e to indo atrás dela. E nem pense em se meter. Filhote de beuzebu. 

Chico olhava catatônico, a mulher esvair-se em sangue. O líquido era escuro e pastoso, ele acompanhou, com os olhos, seu trajeto até notar seu pai no canto da parede apontando a arma em sua direção. Não tinha ouvido uma palavra. 

- Não se mecha, filho de uma puta. Só tenho uma bala e é pra mim. Num me faça mandar você pro inferno antes da hora. Eu sei que seu pai, ainda tem muita coisa ruim pra colocar no seu destino. Você num é meu filho, sua peste. É por isso que eu to matando essa vadia, ela me traiu com o capeta. 

Chico olhava para ele sem compreender suas palavras, o barraco fedia à cachaça e sua mãe continuava no chão gemendo timidamente. 

- Eu dei uma facada no bucho dela pra ela morrer devagar, mas to achando que vou ter que dar mais algumas... – a arma apontada para Chico tremia na mão do velho – Escuta aqui ô desgraçado! Você vai ficar ai na porta vigiando, tá me ouvindo? Vai acabar rapidinho. Satanás já falou comigo. Ele tá me esperando, vou acertar minhas contas com teu pai daqui a pouco, mas preciso levar tua mãe junto que é pra ela ser feita de brinquedo lá no inferno. Agora vai lá pra fora e num deixa ninguém entrar aqui. Tá me ouvindo? 

Chico, olhou para faca ensangüentada na mão do pai e concordou lentamente com a cabeça. 

- Você é esperto, seu caralho. Agora SAI DAQUI! 

Chico virou-se e saiu, fechando a porta atrás de si. 

Lá fora a chuva caia pesadamente, fazendo caminhos na rua de barro, Chico estava a salvo dela na sobra de telha sobre sua cabeça. Mas ainda podia ouvir seu pai lá dentro. 

- Tá quase tudo pronto, vadia. Agora vamos dar só mais ‘umazinha’, pelos velhos tempos. 

Chico deu mais alguns passos, parando no meio da rua, onde só conseguia ouvir a chuva. Gritos aterradores escapavam entre as frestas da porta. Ajoelhou-se, tapou os ouvidos e pôs-se a repetir desesperadamente: 

- Morram! Morram! Morram! 

Ouviram-se algumas batidas metálicas, um grito agonizante, depois silêncio. Chico esperou, esperou e nada. Levantou-se e entrou novamente. Sua mãe continuava no canto, nua e banhada em sangue, parecia haver cortes no rosto, nos seios, braços, pernas, pés, cabeça, havia cabelo solto no chão, manchas de sangue na parede e apesar do silêncio Chico ainda ouvia os gritos dela. O corpo tremia com alguns espasmos. Chico olhou em volta e o velho erguia a arma com o cano encostado na própria testa, mas suas mãos tremiam a ponto da pistola não aprumar-se totalmente. Chico aproximou-se devagar, segurou a mão de seu pai e firmou o cano da arma na testa do velho. 

- Acaba com isso! – disse – Atira agora, ou então vou arrancar suas tripas com essa faca. 

E com um tapa derrubou a faca no chão, seu pai chorava. 

- Não posso, tenho medo de morrer. Atira você em mim. Comprei essa arma e essa bala pra isso, mas não posso. 

- Me deixa em paz seu filho da puta, atira logo, eu não vou fazer favor nenhum pra você. Não te devo nada, tá me ouvindo? Aperta essa porra ou vai ser do meu jeito. 

Seu pai ergueu a cabeça e o fitou nos olhos. Chico tinha uma expressão de desprezo. Puxou a arma das mãos de seu pai e atirou no joelho do velho. 

BANG, ecoou o tiro noite afora em meio aos pingos da chuva. O som inflou todo o barraco, Chico fechou os olhos e respirou fundo. 

- Puta que pariu! Desperdicei a única bala. Deveria ter acabado com a agonia dela. 

Seu pai havia caído no chão e gritava desesperado. 

- Agora, aposto que tá novo... passou a cana inteira. 

- Sabia... Soube no instante que vi a barriga daquela vag... 

Chico interrompeu o velho com um chute na boca. 

- CALA A BOCA! Você disse que sou filho de Satanás, mas o único demônio que existe é você. Então eu sou seu filho mesmo, porra. Aceito meu destino. Você fez o que quis, agora vai acertar as contas comigo. 

Chico pisou com força no joelho baleado do seu pai e apanhou a faca. 

- Tira a calça, papai. Vou provar pra minha mãe ali, que você num é, nem nunca foi, homem. 

- Vai se foder, seu pirrAAAAAAAAA... – a faca penetrou no furo da bala e rodopiou entre os ossos do velho. Os ossos do joelho rangeram e esstalaram. – EU TIRO! EU TIRAAAAAA... 

Lá fora, chuva, relâmpagos e trovões abafavam qualquer som que pudesse sair do barraco. Chico puxou a faca com força fazendo descolar a rótula do joelho, que ficou balançando pendurada na pele. Seu pai pôs-se a tirar as calças entre lágrimas. Chico pegou alguma distância e acertou mais um chute na cabeça do velho. Que ficou quieto no canto da parede. Aproximou-se do corpo de sua mãe, verificou que os espasmos e o sangue continuavam. Calculou, mais-ou-menos, onde seria o coração e enfio a faca com força, várias e várias vezes, escutando os ossos se partirem. Repetiu até sentir que batia em um saco de carne sem vida. Voltou-se para o velho que tentava se erguer no canto da parede. Calmamente ergueu-se passou o ferrolho na porta e apanhou uma garrafa de cachaça em cima da mesa. Tragou um gole longo va-ga-ro-sa-men-te. E jogou a garrafa para seu pai. 

- Vai um último gole ai, vagabundo. 

O velho derramou o resto na garganta, reuniu suas forças e arremessou a garrafa com força em Chico. A garrafa chocou-se contra seus braços e caiu no chão sem quebrar. 

- É o demôni... Ele te possuiu... A peste nem se machuca maisss... 

- Que porra de demônio, seu filho da puta. Para de falar merda, sou eu mesmo Chico Pequeno, seu filho. A minha ruindade agora é maior do que eu e você. E agora só há nós dois aqui pra sentir o peso dela. – Chico falava com uma força e uma autoridade nunca vistas em sua voz. Seu pai arregalou os olhos e secou as lágrimas. 

- Vamo porra, me mata logo. Agora eu criei coragem, me entrega a faca que eu mesmo faço. 

- Hahaha. Calma, velho safado! Sabe que hora é essa? Tá cedo ainda. Vai chover a madrugada inteira, tempo é o que não falta pra gente se divertir. 

Chico apanhou a garrafa, quebrou-a no chão e enfiou-a na barriga do seu pai. 

- Nem se atreva a tirar ela daí – falou apontando-lhe a faca. 

O velho segurava a garrafa enfiada em sua barriga com as duas mãos e suava em grandes gotas que caiam no vidro. Mais embaixo Chico arrancava-lhe o pênis cirurgicamente. 

- Viram? Eu disse que ele não é homem. Eu disse! 

E arremessou o órgão contra a parede. Deu dois passos para trás e ficou olhando o velho desesperado segurando a garrafa contra sua barriga, até ele cair de lado e largar a garrafa, que também caiu liberando uma corrente de sangue que se espalhava da sua camisa para o chão. 

Chico assistia a cena e sua expressão não parecia mais tão dura. 

- Chega. Não quero mais ver sua cara. 

Ajoelhou-se frente a seu pai e começou a esfaquear com toda força que possuía o pescoço do velho, que não fazia mais resistência alguma. Permaneceu assim, por minutos até bater com a faca contra o chão. Ergueu-se e viu a cabeça separada do corpo. Encostou o pé sobre ela e a rolou para frente. A cabeça deu duas voltas e parou virada para cima. Chico não reconhecia mais aquele rosto, os olhos estavam fechados e a boca aberta com a língua pendendo enlameada em sangue e barro. Chico aproximou-se e tentou algumas ‘embaixadinhas’ com o objeto, desistiu e encaminhou-se para o outro cômodo, deitou-se na cama e adormeceu logo em seguida. 

Acordou entre socos e chutes, sendo algemado por policiais. Na saída da casa notou um público razoável que se acotovelava para vê-lo. A rua estava seca e Chico não fazia a mínima idéia de quanto tempo havia passado. Foi atirado no banco de trás, e cercado por dois policiais gordos. Assim que o carro deu partida, Chico sentiu os cutucões dos cassetetes e os socos o puseram em nockout novamente. Acordou em uma cela com mais cinco ou seis sujeitos. Dois dias, um interrogatório e algumas surras depois foi arrastado para fora da cela e posto de pé na parede ao lado de outros algemados, dispostos em fileira. 

- Todo mundo quietinho ai, seus ‘filhos das putas’. O repórter vai falar com vocês e depois volta todo mundo pros ‘seus buraco’, e quem fizer alguma má criação aqui, vai apanhar até virar boneca. 

Chico permaneceu ali, desorientado, olhando em volta. Os outros presos o olhavam com uma mistura de medo e respeito. Suas roupas estavam petrificadas por sangue e barro, seu rosto era todo vermelho, suas pernas tremia um pouco e sua cabeça não conseguia parar em uma única imagem ou palavra. Um câmera, um homem carregando um refletor e um repórter se aproximaram. 

- Pode filmar aqui rapazeada? – perguntou o repórter sorrindo – É pra TV, vocês vão ficar ‘tudo’ famoso. 

A maioria deu as costas ou cobriu o rosto com as mãos. Chico permaneceu imóvel, olhava fixo para o chão. O repórter se aproximou. 

- É esse aqui João, filma o rapaz aqui, João. 

O câmera se posicionou e começou a filmar fazendo um sinal de positivo pro repórter, que deu uma arrumada no cabelo e virou-se para Chico. 

- Eithaaa! Hoje o negócio tá brabo aqui na delegacia, meu filho. Digaí meu jovem, o que foi que você fez? Ouvi dizer ali atrás que você é jogador de futebol. Conte ai pra’gente, é verdade? 

Chico continuava imóvel fitando o chão. 

- O gato comeu sua língua foi? Diga ai, meu jovem! Num precisa ficar tímido. Você agora é famoso. Disseram-me que você tá treinando pra ser açougueiro. Conte ai o que aconteceu, conte. 

Chico ergueu a vista pro repórter, que hesitou um instante com um pequeno passo para trás e depois estendeu o microfone para ele. 

- Eu matei, aquele velho filho da puta – disse, Chico – matei aquela velha besta que só falava merda, e se algum de vocês falar alguma coisa, eu mato também. 

O repórter abriu um sorriso. 

- Calma rapaz, eu sou seu amigo, você tá muito nervoso. Fique calmo. Diga ai pro telespectador como é seu nome! 

- Chico pequeno, o filho de satanás. 

Chico avançou para a câmera e tentou uma cabeçada. O câmera deu alguns passos pra trás e enquadrou o repórter e Chico novamente. 

- Ta ai, minha gente, essa foi mais uma matéria comigo, Chico Cruz e meu chará, Chico Pequeno, para os “Anjinhos do Dia”. Não perca amanhã direto do presídio Serrotão, a chegada de Chico pequeno na cadeia. 

O repórter estava com o braço envolto do pescoço de Chico que sorria encarando a câmera com timidez.