Chico pequeno, como todos lhe chamavam, chutava feliz sua bola remendada, naquela rua vermelha. Por cima dos trapos vestia uma fina camada de barro e quando não estava brincando sozinho, arrastava sua barriga inchada para cima e para baixo, disparando as piores ofensas do seu, quase infinito, repertório. Chico não tinha amigos, espantava a todos, era o dono da bola e não aceitava a derrota sem quebrar um nariz. Mesmo os garotos maiores o deixavam em paz. Assim passava suas tardes, seu pai não se intrometia em sua criação, era da feira pra casa, de casa pro bar, sua mãe passava o dia lavando a roupa de suas clientes e falando da vida alheia com as vizinhas. Vez ou outra apareciam um ou outro garoto tentando compartilhar a companhia de Chico, experiência que se mostrava cada vez menos bem-sucedida ou corriqueira. Parecia extremamente difícil e cansativo para os outros garotos fazerem sempre papéis secundários nas brincadeiras absurdas de Chico, que através de sua imaginação perturbada criava situações em que interpretava o amante sorrateiro fugindo à perseguição de um marido ciumento, ou um bandido astucioso fugindo à captura da polícia corrupta. E pobre do garoto que insinuasse uma apreensão ou coisa parecida, este iria para casa com péssimas recordações e algumas cicatrizes.
Era chegada a puberdade e Chico tinha uma aparência cada vez mais grotesca, seu rosto era cheio de espinhas, fedia e vestia trapos, jamais mencionou ou sequer pensou em frequentar a escola. Era totalmente ignorado pelas garotas da sua idade e as poucas que o notavam sentiam nojo e repulsa, o que Chico retribuía com insultos e ofensas, quando não, pedradas e ameaças. E assim passou-se a infância daquela criatura.
Já adolescente, aos dezesseis anos, Chico ia sozinho ao centro da cidade praticar pequenos furtos e até alguns assaltos para conseguir dinheiro e sustentar seu novo vício, o crack. Caminhava com os olhos vidrados, sem encarar ninguém e sem olhar fixamente para coisa alguma. Enquanto andava seus olhos corriam todos a sua volta em busca de uma potencial vítima e uma maneira simples e prática de financiar sua próxima ‘latada’, como chamava sua diversão. E assim passavam-se os dias para Chico, entre furtos, assaltos, latadas e mais latadas, após saciar seu vício sentava-se em frente ao portão e observava os passantes, divertia-o fazer caretas para as pessoas e observar suas reações. Ali Chico deixava o tempo correr, aguardando o próximo chamado do crack, para então recomeçar seu trajeto a procura da próxima vítima.
Chovia naquela noite de São João, quando Chico voltava com seus saltos bêbados de poça-em-poça. Aproximou-se um pouco da sua casa e ouviu gritos, sua mãe apanhando, pra variar. “Aquele demônio, já está bêbado de novo”, pensou. Correu até a casa e abriu a porta com um chute. Viu sua mãe no chão ensangüentada e seu pai no canto da sala com uma faca e uma calibre 38 nas mãos.
- Matei essa vadia e to indo atrás dela. E nem pense em se meter. Filhote de beuzebu.
Chico olhava catatônico, a mulher esvair-se em sangue. O líquido era escuro e pastoso, ele acompanhou, com os olhos, seu trajeto até notar seu pai no canto da parede apontando a arma em sua direção. Não tinha ouvido uma palavra.
- Não se mecha, filho de uma puta. Só tenho uma bala e é pra mim. Num me faça mandar você pro inferno antes da hora. Eu sei que seu pai, ainda tem muita coisa ruim pra colocar no seu destino. Você num é meu filho, sua peste. É por isso que eu to matando essa vadia, ela me traiu com o capeta.
Chico olhava para ele sem compreender suas palavras, o barraco fedia à cachaça e sua mãe continuava no chão gemendo timidamente.
- Eu dei uma facada no bucho dela pra ela morrer devagar, mas to achando que vou ter que dar mais algumas... – a arma apontada para Chico tremia na mão do velho – Escuta aqui ô desgraçado! Você vai ficar ai na porta vigiando, tá me ouvindo? Vai acabar rapidinho. Satanás já falou comigo. Ele tá me esperando, vou acertar minhas contas com teu pai daqui a pouco, mas preciso levar tua mãe junto que é pra ela ser feita de brinquedo lá no inferno. Agora vai lá pra fora e num deixa ninguém entrar aqui. Tá me ouvindo?
Chico, olhou para faca ensangüentada na mão do pai e concordou lentamente com a cabeça.
- Você é esperto, seu caralho. Agora SAI DAQUI!
Chico virou-se e saiu, fechando a porta atrás de si.
Lá fora a chuva caia pesadamente, fazendo caminhos na rua de barro, Chico estava a salvo dela na sobra de telha sobre sua cabeça. Mas ainda podia ouvir seu pai lá dentro.
- Tá quase tudo pronto, vadia. Agora vamos dar só mais ‘umazinha’, pelos velhos tempos.
Chico deu mais alguns passos, parando no meio da rua, onde só conseguia ouvir a chuva. Gritos aterradores escapavam entre as frestas da porta. Ajoelhou-se, tapou os ouvidos e pôs-se a repetir desesperadamente:
- Morram! Morram! Morram!
Ouviram-se algumas batidas metálicas, um grito agonizante, depois silêncio. Chico esperou, esperou e nada. Levantou-se e entrou novamente. Sua mãe continuava no canto, nua e banhada em sangue, parecia haver cortes no rosto, nos seios, braços, pernas, pés, cabeça, havia cabelo solto no chão, manchas de sangue na parede e apesar do silêncio Chico ainda ouvia os gritos dela. O corpo tremia com alguns espasmos. Chico olhou em volta e o velho erguia a arma com o cano encostado na própria testa, mas suas mãos tremiam a ponto da pistola não aprumar-se totalmente. Chico aproximou-se devagar, segurou a mão de seu pai e firmou o cano da arma na testa do velho.
- Acaba com isso! – disse – Atira agora, ou então vou arrancar suas tripas com essa faca.
E com um tapa derrubou a faca no chão, seu pai chorava.
- Não posso, tenho medo de morrer. Atira você em mim. Comprei essa arma e essa bala pra isso, mas não posso.
- Me deixa em paz seu filho da puta, atira logo, eu não vou fazer favor nenhum pra você. Não te devo nada, tá me ouvindo? Aperta essa porra ou vai ser do meu jeito.
Seu pai ergueu a cabeça e o fitou nos olhos. Chico tinha uma expressão de desprezo. Puxou a arma das mãos de seu pai e atirou no joelho do velho.
BANG, ecoou o tiro noite afora em meio aos pingos da chuva. O som inflou todo o barraco, Chico fechou os olhos e respirou fundo.
- Puta que pariu! Desperdicei a única bala. Deveria ter acabado com a agonia dela.
Seu pai havia caído no chão e gritava desesperado.
- Agora, aposto que tá novo... passou a cana inteira.
- Sabia... Soube no instante que vi a barriga daquela vag...
Chico interrompeu o velho com um chute na boca.
- CALA A BOCA! Você disse que sou filho de Satanás, mas o único demônio que existe é você. Então eu sou seu filho mesmo, porra. Aceito meu destino. Você fez o que quis, agora vai acertar as contas comigo.
Chico pisou com força no joelho baleado do seu pai e apanhou a faca.
- Tira a calça, papai. Vou provar pra minha mãe ali, que você num é, nem nunca foi, homem.
- Vai se foder, seu pirrAAAAAAAAA... – a faca penetrou no furo da bala e rodopiou entre os ossos do velho. Os ossos do joelho rangeram e esstalaram. – EU TIRO! EU TIRAAAAAA...
Lá fora, chuva, relâmpagos e trovões abafavam qualquer som que pudesse sair do barraco. Chico puxou a faca com força fazendo descolar a rótula do joelho, que ficou balançando pendurada na pele. Seu pai pôs-se a tirar as calças entre lágrimas. Chico pegou alguma distância e acertou mais um chute na cabeça do velho. Que ficou quieto no canto da parede. Aproximou-se do corpo de sua mãe, verificou que os espasmos e o sangue continuavam. Calculou, mais-ou-menos, onde seria o coração e enfio a faca com força, várias e várias vezes, escutando os ossos se partirem. Repetiu até sentir que batia em um saco de carne sem vida. Voltou-se para o velho que tentava se erguer no canto da parede. Calmamente ergueu-se passou o ferrolho na porta e apanhou uma garrafa de cachaça em cima da mesa. Tragou um gole longo va-ga-ro-sa-men-te. E jogou a garrafa para seu pai.
- Vai um último gole ai, vagabundo.
O velho derramou o resto na garganta, reuniu suas forças e arremessou a garrafa com força em Chico. A garrafa chocou-se contra seus braços e caiu no chão sem quebrar.
- É o demôni... Ele te possuiu... A peste nem se machuca maisss...
- Que porra de demônio, seu filho da puta. Para de falar merda, sou eu mesmo Chico Pequeno, seu filho. A minha ruindade agora é maior do que eu e você. E agora só há nós dois aqui pra sentir o peso dela. – Chico falava com uma força e uma autoridade nunca vistas em sua voz. Seu pai arregalou os olhos e secou as lágrimas.
- Vamo porra, me mata logo. Agora eu criei coragem, me entrega a faca que eu mesmo faço.
- Hahaha. Calma, velho safado! Sabe que hora é essa? Tá cedo ainda. Vai chover a madrugada inteira, tempo é o que não falta pra gente se divertir.
Chico apanhou a garrafa, quebrou-a no chão e enfiou-a na barriga do seu pai.
- Nem se atreva a tirar ela daí – falou apontando-lhe a faca.
O velho segurava a garrafa enfiada em sua barriga com as duas mãos e suava em grandes gotas que caiam no vidro. Mais embaixo Chico arrancava-lhe o pênis cirurgicamente.
- Viram? Eu disse que ele não é homem. Eu disse!
E arremessou o órgão contra a parede. Deu dois passos para trás e ficou olhando o velho desesperado segurando a garrafa contra sua barriga, até ele cair de lado e largar a garrafa, que também caiu liberando uma corrente de sangue que se espalhava da sua camisa para o chão.
Chico assistia a cena e sua expressão não parecia mais tão dura.
- Chega. Não quero mais ver sua cara.
Ajoelhou-se frente a seu pai e começou a esfaquear com toda força que possuía o pescoço do velho, que não fazia mais resistência alguma. Permaneceu assim, por minutos até bater com a faca contra o chão. Ergueu-se e viu a cabeça separada do corpo. Encostou o pé sobre ela e a rolou para frente. A cabeça deu duas voltas e parou virada para cima. Chico não reconhecia mais aquele rosto, os olhos estavam fechados e a boca aberta com a língua pendendo enlameada em sangue e barro. Chico aproximou-se e tentou algumas ‘embaixadinhas’ com o objeto, desistiu e encaminhou-se para o outro cômodo, deitou-se na cama e adormeceu logo em seguida.
Acordou entre socos e chutes, sendo algemado por policiais. Na saída da casa notou um público razoável que se acotovelava para vê-lo. A rua estava seca e Chico não fazia a mínima idéia de quanto tempo havia passado. Foi atirado no banco de trás, e cercado por dois policiais gordos. Assim que o carro deu partida, Chico sentiu os cutucões dos cassetetes e os socos o puseram em nockout novamente. Acordou em uma cela com mais cinco ou seis sujeitos. Dois dias, um interrogatório e algumas surras depois foi arrastado para fora da cela e posto de pé na parede ao lado de outros algemados, dispostos em fileira.
- Todo mundo quietinho ai, seus ‘filhos das putas’. O repórter vai falar com vocês e depois volta todo mundo pros ‘seus buraco’, e quem fizer alguma má criação aqui, vai apanhar até virar boneca.
Chico permaneceu ali, desorientado, olhando em volta. Os outros presos o olhavam com uma mistura de medo e respeito. Suas roupas estavam petrificadas por sangue e barro, seu rosto era todo vermelho, suas pernas tremia um pouco e sua cabeça não conseguia parar em uma única imagem ou palavra. Um câmera, um homem carregando um refletor e um repórter se aproximaram.
- Pode filmar aqui rapazeada? – perguntou o repórter sorrindo – É pra TV, vocês vão ficar ‘tudo’ famoso.
A maioria deu as costas ou cobriu o rosto com as mãos. Chico permaneceu imóvel, olhava fixo para o chão. O repórter se aproximou.
- É esse aqui João, filma o rapaz aqui, João.
O câmera se posicionou e começou a filmar fazendo um sinal de positivo pro repórter, que deu uma arrumada no cabelo e virou-se para Chico.
- Eithaaa! Hoje o negócio tá brabo aqui na delegacia, meu filho. Digaí meu jovem, o que foi que você fez? Ouvi dizer ali atrás que você é jogador de futebol. Conte ai pra’gente, é verdade?
Chico continuava imóvel fitando o chão.
- O gato comeu sua língua foi? Diga ai, meu jovem! Num precisa ficar tímido. Você agora é famoso. Disseram-me que você tá treinando pra ser açougueiro. Conte ai o que aconteceu, conte.
Chico ergueu a vista pro repórter, que hesitou um instante com um pequeno passo para trás e depois estendeu o microfone para ele.
- Eu matei, aquele velho filho da puta – disse, Chico – matei aquela velha besta que só falava merda, e se algum de vocês falar alguma coisa, eu mato também.
O repórter abriu um sorriso.
- Calma rapaz, eu sou seu amigo, você tá muito nervoso. Fique calmo. Diga ai pro telespectador como é seu nome!
- Chico pequeno, o filho de satanás.
Chico avançou para a câmera e tentou uma cabeçada. O câmera deu alguns passos pra trás e enquadrou o repórter e Chico novamente.
- Ta ai, minha gente, essa foi mais uma matéria comigo, Chico Cruz e meu chará, Chico Pequeno, para os “Anjinhos do Dia”. Não perca amanhã direto do presídio Serrotão, a chegada de Chico pequeno na cadeia.
O repórter estava com o braço envolto do pescoço de Chico que sorria encarando a câmera com timidez.
2 comentários:
Cara, história mais sinistra essa, também na época em que eu bebia já passei por inúmeras situações não menos escabrosas, mas no final chegava a conclusão que era paranoia de bebum mesmo. kkk.
Abração pra ti.
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