O dia de trabalho foi interessante apesar de tudo. Um desses trabalhos repetitivos que não exigem muito do intelecto, esgotam completamente os seus sentidos e pagam pouco. Fazer o que? É sempre nessas horas que acabo escrevendo. Quanto mais exausto e insatisfeito melhor.
Passei no minimercado comprei umas latinhas e sentei-me na entrada do prédio para ler. Bukowski, impagável como sempre me arrancando algumas risadas, nunca me decepciona. Um daqueles contos que te fazem remeter a infância.
***
Não lembro muito bem o ano, mas sei que cursava o ensino médio, RPM havia reunido a formação original e estava em turnê. Putz, iam tocar na minha cidade e o ingresso custava 40 paus, mas eu era estudante e só pagava 20. Lógico que não tinha um puto no bolso. A moeda corrente em minha carteira eram os tickets de ônibus. Usava para comer, beber e até para comprar amigos na escola, as vezes usava no ônibus também. Não era justo perturbar a mãe pela grana, ela já tinha despesas o suficiente com minha irmã e eu. Ia ter que recorrer ao meu pai, era um saco mas não perderia esse show por nada.
Alguém tinha me dito que ele adorava RPM quando era jovem, então fazia sentido contar-lhe a verdade mesmo.
- Oxe! Tá fazendo o que aqui hoje? - ele já tinha sacado a porra toda, estava perdido.
- Ué! Vim visitar, ver a Telma, a Andressa, o senhor...
- Tá bom! Vai lá dentro e apanha meu cigarro encima da TV.
Como eu odiava essas pequenas ordens, acho até que foi por causa delas que acabei não voltando para casa, depois das férias da 8ª série. Sim, isso e o fato de minha madrasta grudar uma lista de afazeres domésticos na porta do meu quarto. Apanhei o maldito cigarro e o entreguei, havia desistido de pedir a grana.
Ele acendeu o cigarro calmamente com aquele seu isqueiro de mulher pelada, você o virava em outro ângulo e a mulher da foto acenava pra você abrindo as pernas. Nem fazia quinze minutos que eu estava ali, já estava furioso e pensava num motivo pra dar o fora.
- Entao... vai ter um show do RPM e queria saber se o senhor não me emprestava a grana do ingresso e mais uns trocados para eu curtir lá - simplesmente saiu.
Ele entendeu o recado, ia comprar a briga. Hoje em dia até posso imaginá-lo sorrindo por dentro. Deu aquela tragada profunda em que demorava meio século para soltar a fumaça, bateu com o dedo no filtro para derrubar a cinzas na calçada suja, liberou meio mundo de fumaça pelo nariz bem de-va-gar-zi-nho e falou:
- Você já notou que a vizinha da frente não sai do terraço quando você vem aqui?
Naquela época ele morava numa vila, casas de ambos os lados, com seus terracinhos e uma porta na frente mas que se revelavam bem compridas para dentro. De fato a menina ficava lá no terraço da frente o tempo inteiro e eu desviando o olhar a todo momento para não ficar vermelho. O comentário tinha me tirado do sério e feito com que me arrependesse do instante em que tive aquela idéia estúpida.
- Quer saber? Deixa pra lá... Eu acho que nem ia dar pra ir por que tenho prova na segunda e vou ter que estudar... Vou indo... Manda um beijo pra Andressa e...
- Tenho uma mudança pra fazer amanhã, dispenso um dos ajudantes e coloco você em seu lugar, pago o dobro e te deixo lá na casa de sua mãe quando acabar.
- Topo! Vou telefonar pra mãe e dize que vou dormir aqui...
O show valeu cada gota de suor. O trabalho, pensando bem, nem foi tão duro assim. E passar um tempo com o velho enquanto trabalhávamos ao invés de ficar arrumando assunto sem sentido para tentar manter um diálogo, até que foi bem legal.
Achei que escreveria alguma coisa engraçada sobre a vergonha de ser flagrado por um dos amigos da escola descarregando um caminhão de mudança. Mas acho que acebei apenas com um pequenino conto sobre uma vez em que aprendi alguma coisa com meu pai. Uma coisa que essas três latinhas não me deixam ver claramente o que é, mas está lá, sempre estará.
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