A caminho de casa

- Qual tipo de filme o Sr. ...

...

- Você tem aquele? Qual é mesmo o nome do escritor querida?
- É...

...

- Isso! Desfaz, desfaz. Agora pode vir um pouco mais. Isso! Pode vir, pode vir!

Silêncio...

O som dos meus dedos tamborilando de encontro às astes de metal de uma grade. Meus passos na calçada molhada pela recente chuva. Pessoas conversando e bebendo nos bares de esquina. Um mendigo me pára.

- Boa noite! Eu sou catador de latinha, mas não sou lixo...

Interrompo-o, dou uma desculpa qualquer e continuo. Caridade não é o meu forte.

Travestis conversam alto em um salão de beleza. Mais a frente um prédio recuado, fechado e escuro dois homens murmurando se calam enquanto eu passo. Freguês e comerciante.

A rua segue, carros parados resmungando e tremendo, aguardando o semáforo. Caminho calmamente sobre faixas brancas paralelas estendidas no asfalto em alto relevo. Sinto vontade de puxá-las por suas arestas, desgrudá-las e balançá-las subindo e descendo em ondas ao meu redor. Os faróis ansiosos me fuzilam, cintilando ódio em suas luzes brancas e amarelas.

Uma farmácia, quase paro para me pesar, mas a mochila seria um empecilho. Apenas olho a balança enquanto passo.

- Tomar uma cervejinha? Tem loiras, morenas a casa está cheia. Só mulher bonita.

Declino ao convite com um sorriso, continuo descendo.

Uma calçada longa com blocos retangulares. Perco o ritmo da caminhada tentando não pisar nas linhas divisórias. Falho, piso nas linhas e retomo o ritmo. Tive medo que notassem.

Filas em três casas de show. Não conheço as bandas que irão tocar. Nunca entrei em uma delas "semana que vem tem aquela banda legal tocando lá, ótima oportunidade", penso.

Mais semáforos, esses sem carros. Pontos de ônibus, pessoas esperando. Num deles alguém espera solitário.

Começa uma garoa suave. Fecho os olhos com o rosto em direção ao céu por um instante. Perco o equilíbrio e tropeço sem cair. Alguém me disse: "Se você tropeça e não cai dá um passo maior."

Uma cerquinha de plantas molhadas, deslizo minha mão entre as folhas. Molhada esfrego na mão oposta.

Mais bares. Não tenho vontade de beber, apenas seguir.

Perto do fim tem um velho vendendo filmes cult, prometi-lhe comprar mais se ele me fizesse desconto em alguns. Ele fez, não comprei, passo com a cabeça baixa. É torturante saber que ele sabe, que eu sei, que ele está me olhando e por qual motivo.

Meu prédio. Já tem um elevador no hall me esperando. Em casa sento-me na privada para escrever enquanto ouço beatles tocando You know my name.

Encontre-as

Se o destino aprouver e se o barato surgir.



Algumas pessoas só passam por nós,

mas gostaríamos que ficassem.

Passam e nos levam um pedaço,

não nos sobra nem vestígios de nós mesmos.

Não nos pedem pra levar,

mas não estão nos assaltando.

Entregamos de bom grado

e até empurramo-lhes güela abaixo.



Estendemos a mão e continuamos tocando o vazio

depois que se vão.

E tudo continua brilhando cintilante

por um longo instante.

Que não passa de um instante.

Imitando um macaco com uma banana enfiada no cú

Pedro acordou de um sono pesado da bebedeira da noite passada e virou-se para Lucas que ainda dormia em seu confortável colchão inflável. Ficou ali a observar o amigo que dormia lembrando-se de como era bom dormir nesses colchões. "Tudo bem, amanhã é minha vez novamente", pensou. Por hora teria de se contentar com o chão duro coberto por dois lençóis grossos de algodão.

Não demorou muito para que Lucas acordasse. Limpando a remela de seus olhos com a mão direita, esticou o braço esquerdo para alcançar sua carteira de cigarros derby. Acendendo o cigarro ainda deitado, podia ver Pedro que escovava os dentes na pia.

Na pia olhando pelo pequenino espelho, Pedro sorriu e balançou a cabeça em sinal de reprovação:

"Como você consegue acordar fumando?"

"É simples. Deixo o cigarro ao lado da cama, sempre." Respondeu Lucas, liberando um jato de fumaça pelo nariz.

"Tomara que você morra de um cancêr de pulmão."

"Ai você poderá dormir no colchão todos os dias, não é não?"

"Vou buscar minha cerveja que eu ganho mais."

Pedro abriu a pequena geladeira e retirou uma lata de cerveja preta.

"Vai querer uma das suas?"

"Não obrigado. Não sou alcoólatra. Só bebo depois do meio-dia."

Pedro sorriu exibindo seus dentes brancos perfeitos.

"Mas já são 13:47 seu inútil. Eu é que sou o cara que acorda com as galinhas por aqui."

"Não tem uma garrafa de cerveja no chão e seu olho está cheio de remela. Não deve fazer nem quinze minutos que acordou."

"Droga. Você me conhece melhor que minha mãe. É tempo de dar o fora daqui. Como se sai desse lugar?"

"Quando estiver mesmo de saco cheio pra caralho, é só se mandar."

"Acho que entendi..."

Terminando seu cigarro, Lucas levantou-se e abotoou suas calças.

"Vamos dar uma volta."

Pedro encheu os dois bolsos da camisa e os quatro da calça, uma latinha em cada um, virou-se para Lucas:

"Deveria ter comprado uma calça com mais bolsos."

"Nós não vamos longe. Relaxa."

"Ok, ok."

Lucas abriu a porta e fez um gesto elegante com a mão para que Pedro passasse. E foi o que ele fez, tomou um longo gole de sua cerveja preta, arrotou alto por entre seus dentes perfeitamente brancos e passou. Saíram e caminharam até que Lucas puxou a manga da camisa do amigo a ponto de rasgá-la.

"O que aquele carro faz ali parado?"

"Não é seu?" Perguntou Pedro irritado medindo o rasgo em sua manga.

"Está vendo alguma chave no meu bolso?" Respondeu Lucas pondo os bolsos para fora da calça.

"Tenho cervejas nos bolsos e não sou dono de um bar."

"Não! Não é meu. Eu odeio carros amarelos."

"O que há de errado com o amarelo? Minha esposa tinha um carro amarelo e eu adorava quando o via dobrando a esquina da nossa rua."

"Você jamais teve uma esposa. Que mulher viveria com um homem que acorda bebendo TODO SANTO DIA?"

"Você deve ter razão."

"Eu sempre tenho. Agora vamos. Ajude-me a empurrar até o penhasco."

"Nunca vi um penhasco por aqui."

"Tem um depois da subida. Vai ser moleza. Já consigo ver o carro amarelo descendo morro abaixo e se espatifando todo lá embaixo."

"Por que nós não pintamos ele de vermelho?"

"Odeio vermelho também. Anda logo vem me ajudar."

Lucas e Pedro começaram a empurrar o carro ladeira acima sem muito esforço. Ao chegarem no topo colocaram uma Pedra para calçar o pneu e segurar o carro.

"Não sei se posso empurrar esse carro pelo penhasco Lucas..."

"E por que não? Vai dizer que cansou? ... Ok. Eu espero, toma a porra das cervejas."

"Não é isso. Ele se parece muito com o carro da minha esposa, não vou suportar vê-lo se espatifar todo lá embaixo."

"Larga a mão de ser idiota. Você nunca teve esposa. Tá ficando maluco de tanto beber."

"Não sou alcoólatra!"

"Tá bom! E eu sou a Madre Tereza de Calcutá imitando um macaco com uma banana enfiada no cú."

"Não sou alcoólatra!"

"Olha. Eu sou viciado em cigarro. Ok, admito. Fumei duas carteiras da hora que acordei até agora. E daí? O pulmão é meu. Foda-se. Quero morrer de cancêr, mas pelo menos eu sei disso. VOCÊ É ALCOÓLATRA! Admita."

"Vai pro inferno. Não vou empurrar um carro do penhasco só porque ele é amarelo."

"Quer saber? Foda-se! Empurro sozinho."

Lucas começou a fazer força, balançando o carro para a frente e para trás. Pedro tirou mais uma garrafa do bolso e pôs-se a beber olhando para o fundo do penhasco. Olhou para trás e Lucas continuava apenas balançando o carro. Pedro terminou sua cerveja, atirou a garrafa do penhasco e gritou:

"QUE SE DANE! VOCÊ QUE SE DANE! VO-CÊ-QUE-SE-DA-NEEEEEEE!"

Tomou distância, correu e empurrou o carro que começou a se mover em direção ao precipício.

"Já chega, daqui ele vai sozinho."

E o carro continuava e Pedro empurrava mais, até que também parou. E o carro foi. E continuou. E chegou até a baiera. E continuou. E caiu. E Pedro abriu mais uma garrafa de sua cerveja preta. E bebeu.

"Está é a última, precisamos voltar."