Dona Nevinha


Havia abandonado a 4ª série e viajado com minha mãe para outra cidade. Porém, passamos pouquíssimo tempo nessa lá de modo que não fiz minha matrícula em escola alguma e num piscar de olhos já estávamos morando na mesma cidade novamente. Em outro bairro, lógico.
Era um bairro com muitas escolas, mas eu não estava em nenhuma. O ano estava pela metade e não me admitiram. Morávamos minha vó, minha mãe, minha irmã bebê e eu.
Minha avó tinha ajudado em grande parte da minha criação mas agora tinha problemas de saúde e mentais. Tinha alzheimer e as vezes achava que eu era seu filho (meu tio), as vezes nem sabia quem eu era, achava que minha irmã era sua filha (minha mãe) ou apenas ficava bastante confusa sobre aquele bebê e sobre qualquer coisa.
Não me afastava muito de casa por causa dela, da minha avó. As vezes ela acabava saindo pra rua sem rumo e tinha de convencê-la a voltar. Mas era uma senhora muito doce e simpática. Uma dessas pessoas iluminadas pela bondade que pensam nos outros antes de si.
Certa vez os garotos da minha rua, meus amigos, acabaram me convencendo a jogar bola na quadra, não ficava longe de casa. Era numa praça na esquina da minha rua, enquanto estava lá só precisava ir na quina da praça que já dava pra ver o portão da minha casa. Era só fazer isso, de tempos em tempos para conferir se minha vó não tinha saído de casa, que ficaria tudo bem.
Verifiquei que minha vó estava dormindo e fui para a quadra jogar futebol. Brinquei a tarde inteira no meio e no fim de cada partida corria à quina para avistar a minha casa. Jogamos e jogamos o resto da tarde e ela correu bem depressa, a tarde. Vi quando minha mãe desceu do ônibus na parada do outro lado. A Letícia, minha irmã, ia no colo, ao passarem por mim, a mãe perguntou sobre minha vó e disse-lhe que a tinha deixado dormindo. Nessa época a vó tinha um tumor nas costas e tinha que refazer o curativo todos os dias, por isso minha mãe não passava muito tempo longe de casa.
Voltei ao jogo e ela foi pra casa. O jogo continuou até que ouvi minha mãe gritar do portão e corri até lá.

- Que foi?
- Onde está a sua vó?
- Não tá dormindo?
- ...
- Mas...
- Encontra ela agora!

Sabia que ela só poderia ter ido pelo outro lado da rua e não estaria muito longe já que andava muito devagar. Fui até o fim da rua e nada, nas duas ruas vizinhas também nada. Não podia estar mais longe que isso, voltei em casa, sempre correndo. Minha mãe estava no orelhão ligando para minha tia, iriam procurá-la de carro. Passei correndo por ela, entrei em casa, olhei em cada canto, nada. Conferi com que roupa ela tinha saído, um vestido bege, desses de dormir e sandálias havaianas.
Disparei novamente para a rua e ao passar pela minha mãe a ouvi dizer:

- Pergunta nas barracas - tinha passado por uma no fim da rua.

Corri até lá, conhecia o dono e a conhecia, já tinha a visto pelo menos.

- Ah! Vi sim eram umas duas e poucos, foi naquela dire...

Nem esperei que terminasse, já eram umas seis horas, catorze foi a hora que eu comecei a jogar, era tempo suficiente para ela estar em outro bairro. Corri como louco olhando as ruas em cada esquina. Ela estava andando a quatro horas, tinha de estar sentada em algum lugar, não agüentaria. Quatro ou cinco ruas à frente tinha um bar, perguntei e eles também a tinham visto há horas. Continuei correndo, estas horas já estava aos prantos.
Havia anoitecido e nem sinal da minha vó. Estava a vários quarteirões de distância e não encontrava mais ninguém que a tivesse visto, sentei numa calçada e chorei copiosamente. Decidi correr até em casa para ver se tinham novidades, além do que, já estava ficando com medo de andar por ai sozinho.
Comecei a caminhar apressado de volta pra casa e no caminho fui me tranqüilizando aos poucos, com certeza ela já estaria lá ou minha tia já teria a encontrado de carro. Voltei e vi a vizinha na calçada em frente ao portão com minha irmã nos braços, minha mãe estava com minha tia fazendo a busca no carro e tinha pedido que ela cuidasse do bebê. Nada da minha vó ainda. Aproximei-me e a vizinha veio:

- Graças a Deus! Toma aqui sua irmãzinha que sua mãe vai encontrar Dona Nevinha com sua tia.
- Ela não apareceu ainda?
- Ainda não, pega aqui o bebê...
- Não! Vou ajudar a procurar!
- Ajudar? Não menino sua mãe mandou você ficar em casa esperando.

Deixei ela falando sozinha e corri até o final da rua novamente. Nem sabia mais onde procurar e não teria coragem de ir muito longe naquelas ruas escuras e vazias, mas além da preocupação com minha vó, tinha o medo da minha mãe e da minha tia, da tia principalmente. Se elas voltassem com aquele carro vazio, nem queria pensar...
Continuei andando de rua em rua procurando alguém que pudesse me ajudar. Ninguém. Já eram umas sete e meia da noite, ouvi uma risada familiar.
Corri de portão em portão para saber de onde vinha a voz. Não consigo descrever o tamanho do meu alívio ao ver aquelas duas senhoras sentadas no terraço conversando. Uma delas era minha vó.
- Vó!
- Oi, meu fi. Entre aqui chegue.

Dei-lhe um abraço apertado e contive as lágrimas, ela não sabia de nada e não precisava saber. As duas já foram logo arrumando uma cadeira para mim e me obrigando a comer uma infinidade de biscoitos, escapei do de boldo e fiquei só no leite quente. Não faria sentido apressá-la agora, relaxei na cadeira com meu leite, afinal mesmo a tendo encontrado, em casa não seria fácil.
Despedimos-nos e fomos embora. Estávamos a três ruas de casa e minha vó tinha passado metade da tarde e o começo da noite ali.
Dobramos a rua de casa, o carro da minha tia estava parado na frente da casa e as duas, minha tia e minha mãe, vieram correndo nos encontrar. Deixei-as com minha vó ainda na rua e apressei o passo pra casa, mais precisamente pra dentro do meu quarto embaixo da coberta. No portão ainda ouvi a vizinha chata dizer:

- Pelo menos fez alguma coisa que preste né cabeção?

Tomei umas palmadas, fiquei uma semana de castigo e aprendi uma lição. Duas ou três semanas depois, minha avó por parte de pai havia conseguido me matricular em uma escola perto da casa do meu pai, com quem tive de ir morar por causa da escola.
Um ou dois meses depois minha avó, a Nevinha, a perdida, morreu. Por causa dessas brigas bobas e sem razão, coisas de família, só fui avisado uma semana depois, não pude ir ao velório nem ao enterro. Essa é a última lembrança que eu guardo daquela senhorinha meiga e simpática que as vezes nem sabia quem eu era.

2 comentários:

Monstrinha disse...

Poxa... uma estória com final feliz e triste ao mesmo tempo!
Aluma coisa no jeito simples e "caseiro" como você escreveu esse conto me fez lembrar da Clarissa, do Erico Veríssimo.

Uma ótima forma de começar meu dia!

Vampira Dea disse...

Histórias com vó sempre me emocionam e essa particulamente é muito bonita.

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